Brasil-Índia-África do Sul já viram que a revolta árabe obriga a remodelar a ordem mundial


Embaixador M. K. Bhadrakumar

O Brasil, a Índia e a África do Sul meteram uma cunha na engrenagem norte-americana, a qual, até ontem parecia girar e girar e girar inexoravelmente na direção de implantar uma zona aérea de exclusão [orig. "a no-fly" zone”] sobre a Líbia.

De fato, os EUA ainda podem impor a tal zona de exclusão aérea. Mas, nesse caso, o presidente Obama terá de beber do cálice envenenado e ressuscitar a controversa doutrina do pós-Guerra Fria, cara aos governos que o antecederam, do “unilateralismo” por “coalizão de vontades”. Obama não terá onde esconder-se. E tudo o que fez em sua presidência para neutralizar a imagem dos EUA como país agressor [orig. “a ‘bully’”] irá por águas abaixo.

Ontem, Delhi hospedou reunião de alto nível de ministros de Relações Exteriores, com o Brasil e a África no Sul, que bem poderia não passar de ocasião para alguma retórica inócua sobre cooperação “sul-sul”. Nada disso.

A reunião ecoou diretamente no tumultuado sistema e na atormentada ordem internacional contemporânea. A reunião decidiu a favor de declarada oposição à galopante disposição do ocidente para impor uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia.

Tudo indica que os EUA e aliados, que estão ajudando os rebeldes líbios politicamente, militarmente e financeiramente, esperavam extrair um “pedido” do povo líbio, no máximo em um ou dois dias, que usariam como folha de parreira para aproximar-se do Conselho de Segurança da ONU e arrancar de lá a autorização para impor sanções sob os auspícios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Os rebeldes líbios são casa em que ninguém se entende: os nacionalistas opõe-se furiosamente a qualquer intervenção externa; e os islâmicos (muitos dos quais são nacionalistas) opõe-se a qualquer forma de intervenção ocidental.

O "unilateralismo" é a única opção que resta sobre a mesa
Ontem também, reuniram-se em Bruxelas os ministros da Defesa dos países da OTAN, para dar os toques finais, operacionais, à intervenção, pela OTAN, na Líbia. O fato de o secretário da Defesa dos EUA, Robert Gates, ter participado da reunião mostra a importância que os EUA atribuem ao trabalho da OTAN na proposta de intervenção militar na Líbia. Gates não apareceu em outra reunião informal dos ministros de Defesa dos países da OTAN sobre a Líbia, realizada há duas semanas, nos arredores de Budapest.

A diplomacia EUA-Grã Bretanha movia-se por trilha paralela, alardeando uma posição conjunta de todos os rebeldes líbios a favor de pedirem intervenção internacional na Líbia e, especificadamente, sob a forma de uma zona aérea de exclusão. A Liga Árabe e a União Africana mantinham-se sem se definir nem a favor nem contra aquela zona de exclusão.

Pelo cálculo de Obama, só se se conseguisse gerar “um pedido” do povo líbio haveria meio para que a história algum dia absolvesse o ocidente, e o próprio Obama, pessoalmente, pelo crime de invadir membro soberano da ONU – pelo menos, alguma absolvição moral, que fosse. E o “pedido” seria via para empurrar também a Liga Árabe e a União Africana para dentro da mesma empreitada.

Obama é reconhecido por ser intelectual inteligente e cerebrino. É político com traços específicos e raros e merece confiança, no mínimo, por seu agudo senso histórico. Seu antecessor George W Bush, em situação semelhante, teria agido com “audácia”, palavra que, muito estranhamente, o próprio Obama escolheu para associar ao seu nome, em campanha eleitoral [1].

Obama, que sabe que tem encontro marcado com a história, tem dificuldades específicas para decidir-se sobre a Líbia. Robert Fisk, conhecido comentarista de assuntos do Oriente Médio, do jornal londrino Independent, publicou despacho urgente e sensacional, na 2ª-feira (“Obama pede que sauditas entreguem armas em Benghazi”, traduzido), noticiando que o governo Obama havia procurado a ajuda do rei Abdullah da Arábia Saudita, para que entregasse armas aos rebeldes líbios em Benghazi, com o que Riad ficaria ‘com o mico’, a Casa Branca nada teria a explicar ao Congresso dos EUA e não haveria pistas que levassem a Washington.

A depravação moral da jogada – alugar os serviços de um autocrata, para violar as fronteiras da democracia – destaca o desejo obsessivo, em Obama, de camuflar qualquer intervenção unilateral dos EUA na Líbia, garantindo para ele mesmo “negabilidade” [2] perpétua, a qualquer custo.

E então, agora, vem o cruzado, certeiro, da reunião em Nova Delhi. Os três ministros de Relações Exteriores, que pertencem ao fórum conhecido pela simpática sigla IBSA (Índia-Brasil-Africa do Sul, ing. India-Brazil-South Africa) atrapalharam o bem urdido golpe de Obama, e lançaram comunicado conjunto, ontem, no qual “destacam que uma zona de exclusão aérea no espaço aéreo da Líbia, ou qualquer outra das medidas coercitivas além das previstas na Resolução 1970 só poderão entrar em cogitação se estiverem plenamente previstas na Carta da ONU e no Conselho de Segurança da ONU” (Comunicado, na íntegra, em inglês, em tradução).

O ministro das Relações Exteriores do Brasil Antonio de Aguiar Patriota disse à imprensa, em Delhi, que a declaração dos IBSA foi “importante manifestação” do que o mundo não-ocidental estava pensando. Disse o ministro brasileiro: “O recurso a uma zona aérea de exclusão é visto como expediente útil, em alguns casos, mas enfraquece todo o sistema de segurança coletiva e provoca consequências indiretas prejudiciais ao objetivo que todos estamos tentando alcançar”. Patriota acrescentou:

Intervir militarmente em situação de tumulto interno é sempre muito problemático. Qualquer decisão que vise a intervenção militar tem de ser analisada no contexto da ONU, em cerrada coordenação com a União Africana e a Liga Árabe. É muito importante não perder o contato com elas e identificar como veem a situação. (The Hindu, Delhi, 8/3/2011)
Explicou que medidas como a zona aérea de exclusão de que agora se cogita podem tornar ainda pior uma situação já difícil e gerar sentimentos anti-Ocidente e anti-EUA “que até agora ainda não surgiram”.

Também muito significativo é o fato de que o trio de ministros também divulgou declaração conjunta sobre o quadro geral no Oriente Médio. Apresentada como “IBSA Declaration” (Ministério das Relações Exteriores da Índia, 8/3/2011, em inglês, à espera de que o Ministério de Relações Exteriores do Brasil traduza e divulgue), a Declaração reitera a expectativa de que as mudanças que estão em curso no Oriente Médio e Norte da África “tenham desdobramento pacífico”; e manifestam confiança num “resultado positivo, em harmonia com os desejos do povo”.

Parte muito importante da declaração é o reconhecimento, já na introdução, de que o problema da Palestina está no coração do grande distanciamento de que padece o Oriente Médio, e que “desenvolvimentos recentes na Região oferecem uma oportunidade para uma paz ampla (...). Esse processo deve incluir a solução do conflito Israel-palestinos (...) que levará a uma solução de Dois Estados, com a criação de um Estado Palestino soberano, independente, unido e viável, coexistindo em paz ao lado de Israel, com as fronteiras pré-1967 asseguradas e com Jerusalém leste como capital”.

'P-5' perde brilho

Israel deve estar enlouquecidamente furiosa com essa Declaração. Isso à parte, o que preocupará Obama e a OTAN, se três países, de três continentes ‘longínquos’, levantam-se e apresentam declaração conjunta sobre uma zona “no-fly”? Quem, afinal, são esses países? Ah, sim, Obama, sim, está preocupadíssimo. Em resumo curto, os três países estão hoje assentados como membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU e o que quer que digam tem altíssima visibilidade na ordem mundial que acicata a Líbia.

Em Delhi, tudo indica que pelo menos mais um membro não-permanente do Conselho de Segurança – o Líbano – acompanha a trilha aberta pelos IBSA. O que significa “a voz árabe”, afinal, no Conselho de Segurança.

Em resumo, o que se ouve agora é uma voz coletiva afro-asiática, árabe e latino-americana. E não é voz que possa ser facilmente nem calada nem descartada. Ainda mais importante, a posição de Brasil-Índia-África do Sul empurra pelo menos duas grandes potências, membros permanentes, com poder de veto, contra os chifres de um dilema agudo.

A Rússia diz que mantém política externa contrária ao “unilateralismo” dos EUA, e que se pauta estritamente pelo cânone da lei internacional e da Carta da ONU. E a China insiste que representaria os países desenvolvidos. Agora, a posição de Brasil-Índia-África do Sul torna virtualmente impossível que a China construa qualquer tipo de acordo faustiano com os EUA e as potências ocidental em relação à Líbia... no concílio secreto dos detentores de poder de veto do Conselho de Segurança – conhecido como “P-5”.

Por tudo isso, a declaração conjunta de Brasil-Índia-África do Sul, IBSA, semelhante em vários sentidos ao movimento Turquia-Brasil, na questão do programa nuclear do Irã, está, de fato, denunciando a hipocrisia moral do P-5 e dos segredos e vielas ocultas pelas quais se esgueiram.

Interessante também que Delhi tenha subscrito o Comunicado IBSA no momento em que o vice-presidente dos EUA Joseph Biden voava para Moscou, para reuniões amplas sobre os futuros rumos do “reset” das relações EUA-Rússia. Qualquer negócio que EUA e Rússia acertem agora, sobre a Líbia, no quadro do tal “reset” aparecerá, inapelavelmente, como movimento de oportunismo político amoral ou, dependendo do negócio, imoral.

A posição da China não é menos apertada. A China hospedará a reunião de cúpula dos BRICSs em Pequim, em abril. Três ‘bricss’ (Brasil, Índia e África do Sul) dos BRICS (Brasil, Índia, África do Sul e China) subscreveram a Declaração da IBSA. O grupo BRICS pode correr o risco de esvaziar o comunicado conjunto do IBSA sobre a Líbia? Falta perguntar à China. E a China pode, sozinha, andar na contramão de três importantes “países em desenvolvimento”?

Mas, pelo menos para a China, há perspectiva de algum alívio. A China pode, de fato, até, suspirar aliviada. A posição dos IBSA alivia a pressão que os EUA estão fazendo sobre ela, e impossibilita que o problema da “no-fly zone” sobre a Líbia converta-se em questão bilateral entre EUA e China. Semana passada, a China ajudou os EUA a aprovar a Resolução sobre a Líbia, no Conselho de Segurança. Foi movimento surpreendente, que a China tenha votado a favor de resolução que admite intervenção nos assuntos internos de país soberano.

Comentaristas ocidentais festejaram euforicamente a mudança no comportamento dos chineses na mesa superior da política mundial e já apostavam na certeza de que a China, afinal, teria começado a agir como potência “responsável”, disposta a trabalhar aliada ao ocidente, como “acionista” do sistema internacional – como faz a Rússia.

Claramente, a China está sob ataque de sedução, para que dê um passo adiante e fure suas próprias muralhas de princípios, também no que tenha a ver com aprovar a zona “no-fly” na Líbia. Nada sugere que a China ceda, sucumbida ante a bajulação. Mas fato é que, se sucumbir, lá estará, exposta, à plena luz, sob atenção vigilante dos países em desenvolvimento. Verdade é que será muito difícil, para Pequim, esconder tanto “pragmatismo”, sob o manto dos venerados princípios. Evidência indiscutível, isso sim, é que a Declaração de Brasil-Índia-África do Sul livrou a China de toda a pressão que os EUA aplicavam contra ela, para aprovar a zona “no-fly” sobre a Líbia.

A Índia recupera a identidade

Ocorre uma ideia interessante: estará a Índia forçando a mão dos chineses? Não há dúvidas de que Delhi percebeu que a crise da Líbia gera grande oportunidade para que a China trabalhe, em espírito de cooperação, com os EUA – o que seria bem vindo fermento no relacionamente geral entre as duas potências. A “no-fly” zone seria excelente aditivo e China e EUA entrariam em frase de boas relações alquimicamente produzidas. Pequim sabe que a presidência de Obama [e sua reeleição] dependem criticamente de como opere na crise do Oriente Médio.

Ao mesmo tempo, o movimento da Índia no IBSA não pode ser analisado como apenas “chinacêntrico”. Em termos geopolíticos e bofetada altamente visível, nos EUA. Em termos de ‘a ira de Obama’, haverá um preço a pagar. O fato de que a Índia se disponha a correr esse risco e, eventualmente, pagar o preço – com tanta coisa em disputa, no momento em que a Índia aspira a um assento permanente no Conselho de Segurança – dá significado especial à Declaração do IBSA. Fazia muito tempo que a Índia não se levantava para ser vista como front significativo da política exterior dos EUA.

É mais que simples coincidência, também, que a Declaração da IBSA fale tão abertamente a favor da causa dos palestinos. A Índia optou por correr risco calculado e incomodar Israel e o lobby pró-Israel nos EUA. Além disso, há outros sinais, também, de que a Índia afinal, decidiu promover ampla recauchutagem em suas políticas para o Oriente Médio. A Declaração da IBSA é apenas uma primeira manifestação de que a Índia começou a repensar sua política – e talvez essa não seja a modificação de mais longo alcance, na geopolítica da Região.

No momento em que os IBSA adotavam posição sobre a Líbia e o Oriente Médio, claramente a favor do nacionalismo árabe, o Conselheiro de Segurança Nacional da Índia, Shiv Shankar Menon – político de alta reputação como eficientíssimo diplomata, e que trabalha sob ordens diretas do primeiro-ministro Manmohan Singh – estava ocupado em importantes conversações em outro ponto do Oriente Médio, no Irã, com o presidente Mahmud Ahmadinejad.

Longe das câmeras de televisão, Menon entregou carta de Manmohan a Ahmadinejad. Segundo comunicado distribuído pelo gabinete de Ahmadinejad, o presidente do Irã disse a Menon:

Irã e Índia são países independentes, com papel significativo no encaminhamento das questões internacionais (...) As relações entre Irã e Índia são históricas e sustentáveis. Irã e índia, porque sempre se beneficiaram de preservar pontos de vista humanitários nas relações internacionais, devem trabalhar para modelar o futuro sistema mundial, de modo a que se rejam por princípios de justiça e amizade.

A ordem que ainda rege o mundo está à beira do colapso. Sob as atuais circunstâncias, é muito importante que uma nova ordem mundial seja construída e é preciso conseguir que os que impuseram as leis da opressão contra todos não consigam reimpô-las, no novo contexto (...) Irã e Índia terão papel significativo nos desenvolvimentos mundiais futuros. Nossas duas nações, por suas origens e culturas fazem falta ao mundo, hoje.”

A mesma fonte informa que Menon disse a Ahmadinejad:

New Delhi trabalha hoje a favor de boas e amplas relações com o Irã, laços estratégicos, inclusive (...) Muitas das suas [de Ahmadinejad] previsões sobre desenvolvimentos políticos e econômicos no mundo já são realidade e as mudanças envolvem a própria ordem mundial, o que exige que continuemos a construir e estreitar as relações entre o Irã e a Índia (...) As relações entre a República Islâmica do Irã e a República da Índia estão além das relações políticas atuais, têm raízes culturais e civilizacionais, e os dois países têm grande potencial para aproafundarmos relações bilaterais, regionais e internacionais.

Nada mais a dizer. Está tudo declarado e dito. Em resumo, esse tipo de contato político de alto nível entre Irã e Índia era impensável até bem pouco tempo. É sinal muito eloqüente de quanta coisa mudou no Oriente Médio, do papel importante que o Irã alcançou e é sinal, também, de que a Índia já viu tudo isso, muito claramente.

Mais importante que tudo isso, a chegada de Menon a Teerã nesse momento, sob as atuais complexas e tumultuadas circunstâncias, em missão diplomática pioneira e sem precedentes[3], para ativar os entendimentos estratégicos entre Índia e Irã também é evidência de que cresce em toda a Região a consciência de que os tempos de dominação ocidental sobre o Oriente Médio caminham inexoravelmente para o fundo dos livros de história. A ordem mundial nunca mais será a mesma.

Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.


Notas de tradução
[1] The Audacity of Hope: Thoughts on Reclaiming the American Dream [A Audácia da Esperança] é o título do segundo livro de autoria do então senador Barack Obama. No outono de 2006 alcançou o 1º lugar na lista dos mais vendidos do New York Times e da Amazon.com, depois de promovido no programa de Oprah Winfrey. Dia 10/2/2007, menos de três meses depois da publicação do livro, Obama anunciou sua pré-candidatura, afinal vitoriosa no Partido e nas urnas, à presidência.
[2] Sobre “negabilidade total”, ver “Blackwater e a negabilidade total”, 21/9/2010, em , sobretudo a nota 1.
[3] Aqui, nosso brilhante companheiro analista erra. Há precedentes para esse movimento em que a Índia agora, afinal, está embarcando, bem vinda companheira. Celso Amorim e Lula do Brasil viram tudo isso ANTES da Índia. Patriota segue aquela trilha, bem seguida. E a Índia, muito provavelmente, também segue aquela trilha, aquela, sim, livre, independente, visionária e pioneira.

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