A China está usando estratégias antiterroristas ocidentais para com os muçulmanos como justificativa para seus campos de concentração para os Uigures
Arquivo: bandeiras nacionais chinesas são vistas nas paredes da Cidade Antiga em Kashgar, na Região Autônoma Uigur do Xinjiang, na China, em 6 de setembro de 2018 (Arquivo: Thomas Peter/Reuters)
Em resposta ao crescimento internacional da crítica à detenção de mais de um milhão de muçulmanos Uigures nos chamados “campos de reeducação”, o ministro do exterior chinês Wang Yi defendeu as ações do país, informando que “os esforços estão inteiramente alinhados com a direção que a comunidade internacional tem adotado para combater o terrorismo ... se pudermos cuidar da prevenção, será então impossível ao terrorismo espalhar-se ou criar raízes”.
Outros dirigentes chineses defenderam as ações de seu país, afirmando que o Islã é uma “doença ideológica, classificando os campos de concentração como hospitais necessários para a cura das pessoas dessa doença. O embaixador da China nos EUA, Cui Tiankai que seu país está tentando transformar os Uigures em “pessoas normais” e um jornal pró-governo chinês divulgou pelo Tweeter: “o Ocidente deveria ser consistente com seu próprio sistema de valores. Como pode ser correto matar terroristas com mísseis, mas considerar que há uma crise humanitária quando Xinjiang tenta transformar prováveis futuros terroristas em gente normal?” Essas declarações descrevem a fé de mais 1,7 bilhão de pessoas em que haja uma doença da qual eles (os uigures) precisam ser curados.
Ver o Islã como uma anormalidade e causa de “extremismo” não é uma exclusividade da China, antes ela encontra abrigo nos programas Ocidentais Contra a Violência e o Extremismo, os quais vem as expressões de identidade muçulmana como sempre associadas ao “extremismo” e à “radicalização”. Programas destinados a “prevenir o extremismo”, têm resultado na estigmatização e na criminalização das comunidades muçulmanas.
O atual discurso público sobre o terrorismo consiste na fixação do Islã e na expressão da identidade muçulmana como indicadores de “extremismo”, “radicalização” e “terrorismo”. Esta não é uma linha de pensamento restrita à República Popular da China, antes esse ponto de vista permeia muito das políticas e das pesquisas acadêmicas ocidentais. Classificados como estudos sobre o “novo terrorismo”, esse campo de trabalho surgiu após o 11 de setembro como um esforço para explicar, não para entender, a violência política do século 21 e tem afirmado que o Islã é a causa básica para indivíduos escolherem se engajar na violência. Nos EUA, esta infraestrutura levou a guerras destrutivas além fronteiras, vigilância sobre os muçulmanos no país e amplas violações de direitos humanos.
Em 2011, um documento aberto do governo dos EUA comparou o hijab ao “terrorismo passivo”. O autor via uma peça de vestimenta – o véu usado por muitas muçulmanas que acreditam ser ele parte de sua religião – como um indicador de apoio à violência. Este mesmo argumento cultural racista sustenta a proibição do hijab e dos véus que está surgindo na Europa. Políticos e ativistas que apoiam essas medidas argumentam que uma peça da vestimenta equivale à violência e assim aprovam legislação que obriga as mulheres a não usá-la, resultando em grosseira violação dos direitos humanos do indivíduo. Tais políticas são construídas sobre uma premissa falsa e qualquer base que identifique os sinais atribuídos à identidade muçulmana (cultivar a barba, ir à mesquita, usar o hijab, etc.) como indicadores de “radicalização” e “extremismo”. A China também adotou essa infraestrutura em que os véus são “anormais” e as barbas são proibidas na região do Xinjiang.
Autoridades chinesas afirmam que o Islã é uma “doença” pode também encontrar precedente em comentários feitos por políticos ocidentais que já usam essas afirmativas anti-muçulmanas para promover suas agendas hostis. Em 2014, o representante (deputado) do estado de Oklahoma, John Bennett, descreveu o Islã como um “câncer em nossa nação que deve ser removido.” O ex-conselheiro de segurança nacional de Donald Trump, Michael Flynn descreveu o Islã como um “câncer maligno” e completou dizendo que “o medo dos muçulmanos é algo RACIONAL”. Em uma mensagem no Tweet de 2016, Flynn divide diversas similaridades com as atuais afirmativas da China quando declara que a “ideologia islâmica (está) doente e deve B curada”. Em 2015, no Arquivo Kelly, o comentarista político conservador Glenn Beck argumentou que há uma “doença no Islã” e ela deve ser tratada.
Essas perigosas afirmativas tornando doente um sistema de crenças não estão restritas aos Estados Unidos. Em março de 2017, a política de extrema-direita australiana, Pauline Hanson, declarou: “O Islã é uma doença; precisamos nos vacinar contra isto.” Em 2017, Caroline Santos, candidata pela UKIP, grupo de direita no Reino Unido, descreveu o Islã como um “câncer” em uma mensagem pelo Tweet elogiando a figura de Tommy Robinson, da extrema-direita.
Importantes figuras anti-muçulmanas como Ayan Hirsi Ali e Asra Nomani têm também atribuído o uso de frases muçulmanas comuns como “Allahu Akbar” (Deus é grande) e “insh Allah” (se Deus quiser) como estando associadas ao extremismo e ao terrorismo. Nomani e Hirsi Ali são conhecidas figuras da direita que fizeram carreira promovendo visões perigosas e discriminatórias acerca dos muçulmanos, mas suas afirmativas de que a terminologia árabe é uma “bandeira vermelha” para o terrorismo e/ou extremismo não foram relegadas a uma visão política do tema. Em 2018, autoridades suíças multaram um homem por ter dito “Allahu Akbar” em público e defenderam sua ação argumentando que “os transeuntes poderia tê-lo confundido com um terrorista”. Hoje na China, os muçulmanos que forem ouvidos saudando um outro com a frase comum “As-Salam Alaikun” (que a paz esteja contigo) serão detidos em uma das unidades de crescente rede de campos de concentração do país.
A China está instituindo os mesmos tipos de denúncias usados pelos políticos ocidentais para "cortar" o Islã, ao criminalizar qualquer expressão da identidade muçulmana, inclusive a remoção dos exemplares do Alcorão das casas das pessoas, restringindo o jejum durante o mês do Ramadã e proibindo os pais muçulmanos de dar nomes muçulmanos a seus filhos. Em um esforço de liberar os muçulmanos dessa “perigosa ideologia” o governo construiu 28 campos de detenção, descritos pela Anistia Internacional como comparáveis aos “campos de concentração dos tempos de guerra”, designados para erradicação em grande escala da identidade muçulmana dos Uigures. Os detentos nesses campos são obrigados a resistir à tortura psicológica e física, renunciar à sua fé e a jurar lealdade ao partido comunista chinês.
Sob o disfarce de prevenir o terrorismo, os governos têm sido capazes de instituir políticas discriminatórias e mortais nas comunidades muçulmanas. Os proponentes dessas medidas justificam seus atos com o argumento claramente falso e discriminatório que identifica o Islã como fator explicador da violência política.
O que estamos atualmente presenciando na China é o produto de uma estrutura que aponta para o Islã e a expressão da identidade muçulmana como causas centrais do terrorismo, um ponto de vista que encontra sua origem no, e é derivado do, discurso político ocidental.
Mobashra Tazamal é pesquisadora em Islamofobia na Universidade de Georgetown, em Washington, DC,. EUA
Tradução do Inglês: A. Pertence