Extintas em 1982, elas multiplicam-se de novo. Agora, quem as habita já não tem esperança de sair. E convive com o lixo, as ameaças de despejo e a ausência de escolas.
Na superfície, a capital próspera e vibrante, a chamada cidade-luz. Embaixo, um submundo insalubre, precário e provisório.
É preciso descer por uma escada de madeira improvisada para entrar no terreno do Boulevard Ney, em Paris, uma bidonville (literalmente, “cidade de lixo”) instalada em uma linha de trem abandonada, perto do Boulevard Périférique, o anel viário que marca o limite da capital francesa. A França acreditava erradicadas as favelas, associadas às paisagens suburbanas dos anos 1950 e 60, em plena explosão demográfica. Mas há uma década, aproximadamente, os barracos voltaram a aparecer dentro das cidades, em regiões periféricas e junto às estradas.
O Boulevard Ney é uma cicatriz em plena Paris. Veem-se latas de bebida pelo chão e ratazanas por trás dos barracos. São 15h e as crianças, que, exceto por raras exceções, não vão à escola, brincam pelo estreito corredor entre as construções que serve de rua principal. Está ali uma menina de 11 anos que, com um espanhol perfeito, explica que quando morava em Madri frequentava a escola, mas não aqui. E duas gêmeas, mais novas, que tampouco foram à escola hoje, e que se aproximam curiosas do visitante, e riem quando este lhes diz o seu nome. Uma mulher se esquenta perto de um braseiro, enquanto um homem limpa um peixe. Um dos chefes locais tenta resolver a gritos uma briga em um dos setores do assentamento.
Dentro de um dos barracos, impecavelmente limpo e bem arrumado, um casal jovem cuida de seu bebê recém-nascido, e se preocupa com o anunciado desmantelamento do local, que ameaça afastá-los do médico que está tratando de um problema nos pés da criança. Outra mulher mais tarde afirmará, por telefone, que seu marido está na prisão e adia sua entrevista com o jornalista: diz que antes tem que ir pedir esmola nas ruas para poder alimentar seus filhos.
Os cerca de 300 habitantes da bidonville do Boulevard Ney são de etnia rom e originários da Romênia. O bairro é apenas um dos 571 acampamentos ilícitos, casas ocupadas e zonas de favelas na França, segundo o registro da Delegação Interministral do Alojamento e do Acesso à Moradia (Dihal, na sigla em francês). Nesses espaços vivem 16.000 pessoas, das quais cerca de 30% são menores de idade.
A eles se unem as barracas de camping e os carros: a 20 minutos a pé do Boulevard Ney, por exemplo, já no município de Aubervilliers, entre uma área industrial e centros comerciais, reúnem-se vans onde pernoitam pessoas que abandonaram as favelas ou que não encontraram outro lugar para viver.
Julien Damon, autor de Un Monde ‘Bidovilles’ – Migrations et Urbanisme Informel (“Um mundo de favelas – migrações e urbanismo informal”), distingue duas categorias de residências informais. A primeira corresponde aos acampamentos de refugiados e imigrantes ao estilo do que já foi desmantelado na cidade francesa de Calais, e que chegou a abrigar 7.000 imigrantes. São quase sempre locais de passagem, instalações provisórias, e seus residentes costumam vir de países de fora da União Europeia. A segunda categoria corresponde às bidonvilles ou favelas, construídas com a ideia de ficarem onde estão e habitadas por cidadãos europeus. Além dos rom, como no caso do Boulevard Ney, na região de Paris também há ou houve até pouco tempo favelas onde vivem búlgaros, ucranianos, moldávios, sírios e imigrantes do norte da África, segundo o sociólogo Olivier Peyroux, citado pelo diário Le Monde. É muito raro encontrar franceses nesses locais, “porque em uma bidonville ninguém se instala sem mais nem menos: em geral é preciso pagar por um direito de entrada e aí a pessoa se reúne com a sua família, no sentido mais amplo”, diz Peyroux.
Damon, professor no Instituto de Ciências Políticas, recorda em seu livro que a palavra francesa bidonville provém das favelas surgidas no Marrocos nos anos 1930. É um termo que começa a ser usado na França nos anos 50. Uma década depois, o fenômeno suscita debates públicos, associados à descoberta dos bolsões de pobreza nos países industrializados em pleno boom econômico do pós-Guerra (nos Estados Unidos ocorreu algo parecido com a guerra contra a pobreza que foi declarada na mesma época pelo presidente Lyndon Johnson. Na França, o jornalista Paul-Maria de La Groce publica La France Pauvre (“A França pobre”, em tradução literal, onde declara que “a dez minutos de Paris enormes bidonvilles abrigam uma miséria sem nome”. Ali viviam sobretudo portugueses e imigrantes do norte da África, segundo Damon; também franceses e espanhóis. Em 1968, havia na França continental – sem contar os territórios ultramarinos – 255 bidonvilles com mais de 75.000 habitantes no total. Os planos para acabar com as favelas mediante a construção de moradia acessível levaram à eliminação da última bidonville em 1982.
É pouco comum que em um país desenvolvido um problema que parecia resolvido reapareça 20 anos depois, mas isso ocorreu na década passada com as favelas. A ampliação da União Europeia com a entrada dos países do centro e do leste da Europa foi o detonador. Hoje há mais bidonvilles na França do que nos anos 1960, mas são menores e menos povoados. Se antes eram um lugar de transição, uma antessala para a integração na França, agora representam uma armadilha da qual é difícil sair.
Há uma tensão no ar na bidonville do Boulevard Ney estes dias. As autoridades anunciaram que vão desmantelar o local em 28 de novembro. Seus habitantes se inquietam por seu destino. Uma pensão? Um albergue? Onde?
Todos cumprimentam Nathalie Jantet, voluntária da Caritas, enquanto ela passeia pela bidonville. Ela ajuda os habitantes com a documentação administrativa, avisa que a destruição dos barracos pode ser iminente e pergunta às mulheres quando levarão as crianças à escola.
Sem escola não há futuro. E a incerteza, segundo Jantet, desanima os pais na hora de escolarizar as quase cem crianças que vivem aqui. “Eles pensam que no mês que vem já não estarão mais aqui”.