Em Ferguson, no estado americano do Missouri, o adolescente desarmado Michael Brown levou seis tiros da polícia local. Uma onda de protestos tomou a cidade, reivindicando justiça e exigindo o fim da militarização e dos abusos policiais.
Mas e a Ferguson brasileira?
No Brasil, a polícia é rotineiramente abusiva, especialmente contra jovens pobres das periferias de grandes cidades. Extorsões policiais de comerciantes e transeuntes são comuns e a tortura é disseminada. Mortes por atuação desproporcional ou execução por parte da polícia não são investigadas nem punidas.
Há alguns meses, Cláudia Silva Ferreira, cujo único “crime” foi o de estar com um copo de café na mão, foi baleada, carregada até a viatura policial para ser levada para o hospital e colocada no porta-malas. Quando o porta-malas abriu, seu corpo ficou preso no para-choque e foi arrastado por cerca de 350 metros pelo asfalto até ser empurrada de volta para dentro do carro.
Não é um caso isolado: no Estado de São Paulo, por exemplo, em 2012, 95% dos feridos em confrontos policiais transportados pela polícia morreram no trajeto até o hospital. Após a proibição desse transporte e a obrigação de contatar socorro especializado, o número de mortes nesses casos diminuiu em 39%.
Todo brasileiro deve estar mais ou menos familiarizado com fatos do tipo.. Mas poucos conhecem o instrumento legal que dá aos policiais licença para matar: o auto de resistência.
Segundo Juliana Farias, pesquisadora da ONG de direitos humanos Justiça Global:
“É importante lembrar que esta denominação [auto de resistência] foi criada durante a ditadura [militar], e é um termo que, assim como naquela época, vem sendo utilizado para encobrir ações da policia que deveriam ser registradas como homicídio.”
O auto de resistência funciona como uma licença para matar porque o registro da “resistência seguida de morte” cria uma presunção em favor do policial. Não se trata de uma mera presunção de inocência, mas de um privilégio da polícia de que sua versão é verdadeira. No caso de Cláudia Silva Ferreira, os PMs responsáveis por sua morte já haviam sido envolvidos em 62 autos de resistência e 69 mortes.
A presunção de inocência não significa que possíveis crimes cometidos por um indivíduo não devam ser investigados, mas os autos de resistência são usados exatamente para evitar investigações. O arquivamento de inquéritos policiais envolvendo autos de resistência é recorrente.
O deputado Paulo Teixeira acrescenta:
“Isso é um entulho da ditadura e continua existindo. No Rio de Janeiro foram analisados 12 mil autos de resistência e 60% deles foram execução pura e simples, muitas com tiro na nuca. Queremos que essas pessoas respondam por homicídio.”
Negros e pobres são ainda mais afetados por esse privilégio policial. Em evento pela abolição do auto de resistência, Vinícius Romão, ator que ficou preso por 16 dias supostamente confundido pela vítima de um assalto, relatou:
“O policial apontou a arma para minha cabeça por causa da minha cor de pele. E só não fui mais um ‘auto de resistência’ porque em nenhum momento pensei em correr. Fiquei tranquilo porque sou formado em psicologia e acreditei que em poucos minutos o erro fosse solucionado. Mas fui levado como flagrante e 157 (assalto a mão armada). Eu não fui parado na mesma rua da ocorrência nem estava com arma nenhuma. Fui parado porque tinha o cabelo black power.. Só o que chamou a atenção da mídia foi quando anunciaram que um ator de novela havia sido confundido. ‘Ator de novela’ vende mais jornal do que ‘negro’.”
Grupos de direitos humanos defendem a substituição do registro do “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte” pelo registro da “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial”, com investigação dos fatos garantida.
O auto de resistência é emblemático do caráter do estado brasileiro. A força policial não apenas monopoliza a prevenção e a investigação de crimes, mas também possui um instrumento facilmente conversível em licença para matar. Não à toa os extermínios, execuções extrajudiciais e “desaparecimentos” são epidêmicos nas cidades brasileiras. É difícil imaginar sistemas alternativos que pudessem ser mais facilmente explorados.
Como afirmou Robert Nozick, todo indivíduo tem direito a um sistema confiável e imparcial e tem o direito de resistir a procedimentos percebidos como pouco confiáveis ou injustos. No Brasil, porém, a resistência é fútil e já não causa qualquer comoção.
Em um cenário onde os direitos do indivíduo são reconhecidos e onde a liberdade humana para escolher seu provedor do direito fosse reconhecida, os autos de resistência sancionados pelo estado brasileiro seriam ilegais.
Nos Estados Unidos, a morte de Michael Brown causou revolta e a população de Ferguson exigiu justiça. Se Michael Brown fosse brasileiro, seria estatística de auto de resistência.
Com esse instrumento, o Brasil legalizou a violência policial. Por isso, ao ver os protestos nos EUA, lembre-se: Ferguson é aqui.
Valdenor Júnior é advogado e colunista do Centro por uma Sociedade Sem Estado.