Cerca de 15 mil pessoas participaram, no dia 20 de novembro de 2013, da Marcha do Boné, na cidade argentina de Córdoba, denunciando a arbitrariedade policial contra os jovens, segundo sua aparência e condição. Foto: Cortesia do coletivo de Jovens por Nossos Direitos
Córdoba, Argentina, 19/3/2014 – Na província argentina de Córdoba, basta ser jovem, moreno, pobre e usar boné para ser detido como suspeito. A arbitrariedade policial se ampara no crime de “merodeo” (vadiagem), um instrumento de prevenção do crime que viola direitos constitucionais. José María Luque, conhecido como Bichi, perdeu a conta de quantas vezes foi detido pela polícia por essas características, em Córdoba, capital da província de mesmo nome. Residente em um bairro humilde, Luque, de 28 anos, foi detido pela primeira vez quando tinha 13 anos e voltava da escola com um amigo, vestido com uniforme escolar. Ficou detido por uma semana.
“Eles nos pararam, pediram documentos e nos levaram presos. Assim, sem mais nem menos. Inventaram uma acusação contra mim: tentativa de roubo qualificado e porte de arma de fogo. Saí por falta de provas”, contou Luque à IPS. Agora ele integra o Coletivo de Jovens por Nossos Direitos, que luta contra o abuso policial. Afirma que teve sorte porque sua família conseguiu pagar um advogado e não lhe restou antecedentes.
Porém, essa não é a realidade de muitos jovens detidos com base no Código de Faltas, de Córdoba, aplicado desde 1994 e reformado em 2007. Um estudo da Universidade Nacional de Córdoba e da espanhola Universidade de La Rioja revela que 95% dos detidos por esse Código não têm acesso a advogados. “Com uma falta em seu prontuário não se tem acesso ao atestado de boa conduta, um dos requisitos mais solicitados pelas empresas na hora de contratar”, ressaltou Luque.
O código pune condutas que supostamente prejudicam a convivência social, como escândalo em via pública, omissão de identificação, resistência à autoridade, alcoolismo, mendicância e ócio. Segundo o estudo, quase 70% dos infratores são acusados de vadiagem, uma falta muito polêmica que permite à polícia deter suspeitos de vadiar, o
que o dicionário da língua espanhola define como “vagar pelas imediações de algum lugar, em geral, com maus objetivos”.
O Artigo 98 do Código pune com multas e até cinco dias de detenção quem permanecer perto de veículos ou instalações urbanas ou rurais “em atitude suspeita, sem uma razão plausível, provocando intranquilidade entre seus proprietários, moradores, transeuntes ou vizinhos”. “É uma figura totalmente subjetiva e arbitrária. Não é explicada qual é a atitude que se deve ter para não ser detido”, apontou Luque, que trabalha desde adolescente e agora é pizzaiolo.
Bichi e outros jovens de semelhante extrato social costumam apresentar um padrão que os identifica: bonés coloridos, calças esportivas e sapatos vistosos. Mas a polícia equipara esse hábito cultural com a presunção de culpabilidade. “Muitos detidos usam boné. O boné é suspeito”, destacou Luque, um dos organizadores da Marcha do Boné, que a cada mês de novembro, há sete anos, pede a revogação do Código de Faltas e que, em 2013, reuniu 15 mil pessoas.
“Digam o que disserem, a acusação de vadiagem é aplicada para que, quando houver morenos com boné nos bairros da periferia, dando voltas por algum lugar, a polícia os detenha”, disse à IPS o advogado Claudio Orosz, representante em Córdoba da organização humanitária Centro de Estudos Legais e Sociais. Orosz atribui o Código a uma sociedade “conservadora e moralista”, herdeira da “repressão e do genocídio” da última ditadura argentina (1976-1983). Para este advogado de casos de crimes de lesa humanidade, por causa dessa cultura, os pobres sofrem o “labirinto kafkiano” da vadiagem.
Segundo um estudo universitário, os detidos nesse contexto são majoritariamente jovens entre 18 e 25 anos dos setores desfavorecidos. Durante 2011, foram detidas 73 mil pessoas na província, 43 mil delas na capital. “Acontece sempre o mesmo: se vem de um lugar pobre, é pobre, tem certa forma de se vestir, tem certos traços físicos, uma determinada cor de pele, e já se é perigoso para a sociedade”, explicou Luque.
Um dos pontos mais questionados do Código é que outorga atribuição de juiz ao delegado de polícia. Isso é uma ironia porque a polícia cordobesa é a que “estrutura e mantém os grandes problemas criminais, os que geram maior dano à sociedade, como tráfico de pessoas, narcotráfico, roubo de peças de carros e venda de armas”, disse Agustín Sposato, também integrante do coletivo juvenil.
Outro agravante, segundo Orosz, são os precários sistemas de impressão digital e investigação de antecedentes nas delegacias de Córdoba. “Às vezes, demora-se três dias para saber se alguém tem antecedentes para depois ser solto, o que constitui verdadeiras privações ilegítimas de liberdade”, ressaltou. “É um sistema de controle social, formalizado pela polícia, que fere os controles básicos de constitucionalidade”, afirmou.
Para Orosz, “o Código de Faltas entrega enorme poder de seletividade e de controle social às forças policiais, sem o controle judicial”. Luque sabe bem. “Nas vezes em que me detiveram, vivi essa sensação de privação ilegítima da liberdade, de sequestro, de não saber quando vai sair, não saber como avisar a família e os amigos que você está ali. A impotência é muito grande, muito obscura, muito feia”, enfatizou.
O governador de Códoba, José Manuel De la Sota, apresentou, em 1º de fevereiro, um projeto de reforma do Código de Faltas, que o parlamento provincial está analisando.
Sergio Busso, presidente do bloco legislativo da governante União por Córdoba, considera necessário manter a figura da vadiagem, porque é importante no combate à crescente insegurança da população na província. Ele disse à IPS que o Código “é um instrumento que regula e pune as condutas antijurídicas, que afetam o direito das pessoas ou da sociedade em seu conjunto e que, por serem leves, não chegam a configurar crime”.
No entanto, Busso admitiu que são necessárias reformas, para que “a prisão e a multa só sejam aplicadas em situações especiais e em seu lugar sejam utilizadas mais as penas substitutivas e acessórias, como trabalho comunitário”. Além disso, para o parlamentar, deve mudar quem pune. O projeto propõe que a falta seja dirimida por promotores ou juízes específicos, e não policiais, “para separar quem julga de quem executa o procedimento” e para garantir “um olhar independente”.
Segundo Orosz, isso já foi tentado e não se pôde aplicar porque o sistema judicial sofreu um colapso com a avalanche de casos. Busso explicou que a reforma contempla que a falta de vadiagem exija a denúncia prévia de um morador identificado. Mas Orosz criticou que esse denunciante é “igualmente subjetivo”. O advogado considera que se deve revogar o Código de Faltas e substituí-lo por outro de convivência, que estabeleça “quais são as condutas desejadas e mecanismos de resolução de conflitos que não sejam necessariamente a prisão”, como a mediação vicinal.
Para o jovem Sposato, as reformas propostas “são uma maquiagem, para acalmar o clima de conflito social” na província. “O que está em jogo é a vida, os direitos das pessoas, a possibilidade de todos na província serem iguais”, destacou.
Faltas versus direitos humanos
Os códigos de faltas e contravenções, para tratar condutas ilícitas que não chegam a ser delitos penais, existem nas 23 províncias da Argentina e na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Em 33% dos casos, é a polícia que detém, investiga e sanciona, o que propicia excessos e violações dos direitos humanos.
Em 2003, o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos condenou o Estado argentino pela detenção ilegal, em 1991, de Walter Bulacio, de 17 anos, durante um show em Buenos Aires, pelo Código de Contravenções. O jovem morreu vítima da brutalidade policial. O tribunal ordenou ao país adequar o ordenamento jurídico interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outras normas internacionais.
Os códigos surgiram principalmente durante os regimes autoritários do século passado, mas foram atualizados pela democracia. Para muitas organizações humanitárias, um de seus problemas é que se introduzem dissimuladamente no âmbito penal, de competência nacional, criando de fato a figura de “delitos menores” provinciais.
Além disso, boa parte deles são difusos nas contravenções, o que colabora para sua discricionariedade, e negam o direito à defesa, à livre circulação, à liberdade pessoal, ao devido processo e ao juiz natural, entre outras anomalias jurisdicionais e humanitárias.
Fontes: Federação Argentina LGBT e Associação pelos Direitos Civis
Envolverde/IPS
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