Foto de Chávez diante de seus eleitores em Caracas, 24 de novembro, 2006. Foto: Presidência
Alfaz, Espanha, março/2013 – É verdade que a vida e a obra do presidente venezuelano Hugo Chávez, falecido no dia 5, tiveram pontos obscuros, mas isso não deveria nos impedir de ver a grandeza de alguém quem faz história.
Primeiro, em seu próprio país, Chávez fez com que os que viviam na miséria tivessem bem-estar econômico, participação política, orgulho cultural (de seu sangue, comumente africano ou indígena), dignidade social, indo além do coeficiente de Gini para medir a crescente igualdade.
Segundo, fez o mesmo pela América Latina: ajudou os países a prosperarem em nome do emblemático Simón Bolívar. Este foi o caso de Cuba, Nicarágua, Equador, Bolívia e Brasil, para mencionar apenas alguns.
Naturalmente, as duas políticas estão relacionadas. A Colômbia, com seus numerosos antecedentes de violência entre 1948 e 2013, é um país pária e só pode ser ajudado a seguir adiante ajudando os que estão nos estratos sociais mais baixos, atacando a flagrante desigualdade. Chávez e outros líderes afins, como Fidel Castro e Daniel Ortega, Rafael Correa e Evo Morales ou Luiz Inácio Lula da Silva, estão em linha.
Essa equipe formidável fez mais do que os líderes europeus, que tentam lidar com sua própria crise. O falecido jornalista e ensaísta Christopher Hitchens há alguns anos entrevistou Chávez e lhe perguntou sobre suas semelhanças e diferenças com Fidel Castro. Chávez respondeu que, no tocante ao imperialismo dos Estados Unidos, tinham as mesmas opiniões e professavam total solidariedade.
Porém, em seguida acrescentou que Fidel é um comunista que acredita em um Estado unipartidário liderado pelo Partido Comunista, enquanto ele era um democrata de esquerda, que acreditava em um Estado multipartidário e em eleições livres; que Fidel é um marxista que só acredita no setor público da economia e ele, por outro lado, em uma economia que combine o público e o privado. Chávez também afirmou que Fidel é ateu e acredita no ateísmo científico, enquanto ele era católico e destacava que Jesus vivera entre os pobres.
Isso foi muito discordante para que algumas mentes anglo-norte-americanas o manejassem. Porém, foi muito significativo na América Latina, particularmente quando tantos se afastaram da Igreja Católica para se unirem aos evangélicos.
O Sermão da Montanha (Mateus 5) foi visto como um programa político, embora neste caso o objetivo não fosse elevar os de mais abaixo para o Céu, mas para uma melhor realidade neste mundo. Muitos outros governos de países petrolíferos têm dinheiro suficiente para fazê-lo, e a maioria dos pobres está disposta a lhes dar legitimidade democrática. Mas foi Chávez quem o fez, inspirando outros líderes e povos da América Latina e do mundo.
A Venezuela é economicamente sustentável? A economia está em problemas, faltam investimentos, acumula-se a dívida com os chineses (um ponto menor enquanto petróleo fluir para a China mais do que para os Estados Unidos, que agora converte areias alquitranadas em poços de petróleo).
O principal fator é fazer com que os outrora marginalizados e excluídos habitantes de favelas contribuam para a economia, fortalecendo tanto a produção quanto a oferta e a demanda. Muitos se sentiram ameaçados pelos pobres e pelo fator racial, incluído o próprio Chávez.
É muito tarde para matar Chávez, mas, talvez, alguns sabotarão a economia. Muitos países se sentirão ameaçados pelos países pobres que emergem, pelos mesmos motivos e por mais um: por acaso isso vai inspirar nosso povo oprimido a fazer o mesmo?
Poderiam os negros dos Estados Unidos e dos Estados do Golfo estarem interessados em uma (con)federação com os países caribenhos povoados da mesma maneira, por escravagistas de Liverpool?
Sem dúvida, alguém está trabalhando 24 horas por dia, sete dias na semana, para que a Venezuela não tenha êxito. Mas, também pode ser muito tarde. O ovo foi colocado em pé, e foi Chávez quem o conseguiu.
No horizonte há questões que vão além do futuro da Venezuela. Devido às ousadas medidas adotadas por Chávez, será difícil para os economistas moldarem suas ilusões. Às vezes, a discriminação positiva é uma indispensável terapia de choque para tirar da miséria vários setores – as mulheres em todas as partes do mundo, as pessoas que não são de raça branca, os malaios na Malásia, os dalits na Índia, embora isso “destrua os mecanismos de mercado” – considerando o pouco tempo que levou para terem efeito na Venezuela.
Os economistas deveriam ajudar a tirar da pobreza os que estão mais afundados nela, incluindo os países que não têm riqueza petrolífera, não só para mostrar os problemas, mas também porque os teólogos cristãos terão dificuldade para passar por cima deste desafio: Jesus viveu entre os pobres, não apenas pregando no monte, mas também alimentando, cuidando, confortando, com compaixão, sobre a Terra.
Chávez não foi um teólogo que entrasse nessa paisagem intelectual. Ele agiu.
Este debate eterno dentro da Igreja de modo algum é novo, como escreve Hans Kung em seu soberbo É hora, finalmente, de uma Primavera Vaticana? (International Herald Tribune, 1º de março de 2013). Do contrário, “a Igreja cairá em uma nova Era do Gelo, se reduzindo até converter-se em uma seita cada vez mais irrelevante”.
Também será difícil para os extremistas de esquerda ver a linha de Fidel Castro como a única possível. A legitimidade democrática ocidental, a economia diversificada e simbiótica e a forte motivação ideológica podem nos levar mais longe.
Mas o Ocidente tende a confundir violência com conflito, cessar-fogo e desarmamento de “rebeldes” com soluções, democracia eleitoral multipartidária com mediação. Um gênio nos faz pensar e agir de modo diferente, fazendo história. Chávez foi um. Obrigado Hugo. Envolverde/IPS
* Johan Galtung é reitor da Transcend Peace University e autor de Peace Economics: from a Killing to a Living Economy (Economia da paz: de uma economia que mata para uma que vive).
(IPS)