A educação é um direito universal não somente por ser garantida por documentos internacionais e pela própria Constituição brasileira, mas também por configurar um elemento fundamental para a qualidade de vida humana e a garantia da dignidade. Ela própria atua como instrumento na validação de outros direitos humanos ou no combate à sua violação, como em casos de escravidão e de violência doméstica. Busca-se, “mediante instrução, inibir o resultado da ignorância, ‘causa dos males públicos e da corrupção', como já proclamavam os revolucionários franceses do século XVIII”, destaca Mônica Caggiano, docente da Faculdade de Direito da USP, no artigo "A educação. Direito fundamental”, no livro Direito à educação: aspectos constitucionais , uma recente coletânea lançada pela Edusp.
Segundo ela, passados mais de duzentos anos da
Revolução Francesa de 1789, na França, inspirada nos ideais iluministas, pouco
se avançou. “O reduzido avanço que se alcançou, em parte, pode ser atribuído à
própria evolução do mundo, de modo muito acelerado e diante de um processo de
globalização que conduz a novos comportamentos e a novas demandas”, diz
Caggiano. A educação continua sendo um desafio para as nações e,
particularmente, para o Brasil, tanto na questão da abrangência e da qualidade
como na sua garantia por meios jurídicos.
Tema recorrente e preocupante
até mesmo nas nações mais desenvolvidas, a educação é considerada como um
direito humano desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização
das Nações Unidas (ONU), em 1948. Nesse sentido, o princípio da participação
coletiva é de extrema importância na elaboração, execução e monitoramento de
políticas educacionais. Passaram a ser responsáveis pela implementação desse
direito as associações de forças sociais e a cooperação entre diferentes
agentes. O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 define que “a educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”.
No Brasil, os sistemas de ensino são organizados de forma
federativa, e a participação de estados e municípios tem sido significativa a
partir da atribuição de encargos educacionais para cada um desses entes da
federação, bem como a obrigatoriedade da destinação de percentuais fixos das
receitas públicas de impostos para a educação. Assim, ao menos 25% dos
orçamentos tributários estaduais devem ser destinados à manutenção e
desenvolvimento do ensino. Aos municípios, compete atuar prioritariamente no
ensino fundamental e na educação infantil, enquanto o ensino médio, em
particular, mas também o fundamental ficam a cargo da esfera estadual.
Ao
governo federal, além do suporte a estados e municípios, cabe definir as
diretrizes das políticas educacionais. “Em razão de a Constituição Federal não
ter indicado nenhum nível de ensino para a atuação prioritária da União,
reforça-se a sua ação supletiva e redistributiva em todos os níveis.
Considerando-se o amplo escopo dessa atribuição (todos os níveis de ensino),
fica claro que à União compete oferecer o ensino superior, na ausência do seu
oferecimento pelas demais esferas do governo”, diz Nina Beatriz Stocco Ranieri,
docente da Faculdade de Direito da USP, em artigo daquela mesma
coletânea.
A ratificação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (Pisec) da ONU, de 1966, pelo Estado brasileiro, e a sua
incorporação no ordenamento jurídico do país em 1992, elevou a educação à
categoria de direito fundamental, incluindo-a no rol dos direitos sociais. Muito
além de apenas uma operação retórica, isso implica que, sendo as políticas
educacionais ligadas a direitos, elas devem ser seguidas como obrigações legais
e que, portanto, podem ser reclamados por indivíduos como prerrogativas
jurídicas.
Garantia do direito à educação
Além
das garantias inerentes dos direitos fundamentais, a educação é também amparada
por um quadro jurídico-institucional. O direito à educação, já assegurado
indiretamente por outros itens previstos no texto constitucional – como os que
determinam as verbas que deverão ser destinadas à educação, por exemplo –, é
considerado público e individual. “Tais previsões facultam ao indivíduo, aos
grupos ou categorias ou entes estatais personalizados, como é o caso do
Ministério Público, demandar a garantia ou tutela de interesse individual,
coletivo ou público, por intermédio de mecanismos previstos na própria
Constituição Federal, como a ação civil pública e o mandado de segurança, dentre
outros”, explica Ranieri.
“O judiciário tem um papel de relevo na
realização dos direitos humanos, assegurando a sua prevalência em situações de
ameaça ou remediando uma violação já consumada”, diz Eduardo Pannunzio, advogado
com experiência na área de direitos humanos, no artigo "O poder judiciário e o
direito à educação”, da coletânea da Edusp. As recentes interpretações das leis
nas tomadas de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no campo educacional
acompanham, segundo Ranieri, os avanços obtidos na promoção, proteção e
exercício do direito à educação, ampliando a atuação da Corte na garantia da
efetivação de políticas públicas educacionais. Alguns dos casos que abrem
jurisprudência para novas demandas dizem respeito a data de pagamento de
mensalidades escolares, garantia de acesso e permanência na escola nos casos em
que o aluno não possui material escolar, bem como o pagamento de meia-entrada
por estudantes em espetáculos esportivos, culturais e de lazer. No entanto, “a
jurisprudência do STF, desde o advento da Constituição de 1988, ainda é
relativamente incipiente e recente”, comenta Pannuzio.
Sendo a educação
um direito universal, e o Brasil fazendo parte dos instrumentos internacionais
que a reconhecem dessa forma, é possível recorrer a mecanismos internacionais,
caso a justiça brasileira não ofereça respostas a violações desse direito.
Somente no âmbito da ONU, são vários os mecanismos de proteção do direito à
educação. Dentre os mais importantes, destacam-se o Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Cdesc) e a Relatoria Especial para o Direito à
Educação.
Panorama brasileiro
Apesar de esforços
por parte do governo e da sociedade como um todo, o quadro de instrução nacional
não é muito animador. Segundo os dados da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2006, o Brasil ainda apresentava
uma taxa de analfabetismo de 10% entre as pessoas de 15 anos ou mais de idade.
Além disso, o país ficou na 53ª posição, na prova de matemática, no ranking do
Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) coordenado pela Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que avalia estudantes de
15 anos. Em ciências, ficou em 52º, e em leitura, no 48º.
A Sinopse
Estatística da Educação Básica de 2007 – último documento publicado pelo
Ministério da Educação (MEC), com base no Censo Escolar do Ensino Básico –
aponta que houve uma redução de quase três milhões na quantidade de matrículas
da educação básica em relação ao ano anterior, o que corresponde a uma queda de
5,2%. Segundo o documento, essa diminuição está associada, em parte, à dinâmica
demográfica, devido à queda na natalidade e à redução da população da faixa
etária correspondente, principalmente, ao ensino fundamental. Porém, o documento
aponta que parte da queda de matrícula registrada em 2007 deve-se às mudanças no
procedimento de coleta das informações do censo escolar a partir daquele ano,
que, ao contar com informações dos indivíduos e ter a data de referência da
coleta modificada, reduziu de maneira drástica a dupla contagem de
alunos.
O Censo Escolar do Ensino Básico, realizado anualmente pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),
serve como referência para o cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (Ideb), que é um indicador utilizado como meta do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE) e de todos os programas educacionais do
Ministério da Educação. Como dado público, serve tanto para diretrizes das
políticas educacionais quanto para cobranças em relação à garantia desse direito
fundamental.
Cabe frisar, portanto, que o direito à educação é um direito
individual, social, econômico e cultural que, como lembra Caggiano, garante a
dignidade e a igualdade de cada cidadão. A existência de artigos na Constituição
e de documentos internacionais que o prevêem, no entanto, ainda não é suficiente
para a garantia de uma educação de qualidade e da erradicação do alfabetismo no
Brasil. Cabe ao Estado priorizar as políticas educacionais e ao Ministério
Público garantir sua implementação, para que, dessa forma, tenhamos, de acordo
com a pesquisadora da USP, um país mais digno e livre de outros males
consequentes da falta de instrução.
(Envolverde/ComCiência)