Nas últimas décadas, David Mamet tem sido o responsável por algumas das raríssimas manifestações de vida inteligente que ainda se detectam no planeta Hollywood.
A ele devemos o roteiro de O Veredicto (d. Sidney Lumet, 1982), o derradeiro grande clássico em filmes de tribunal, no nível de 12 homens e uma sentença (d. Sidney Lumet, 1957), Testemunha de Acusação(d. Billy Wilder, 1957), Anatomia de um crime (d. Otto Preminger, 1959), Julgamento em Nuremberg (d. Stanley Kramer, 1961) e O sol é para todos (d. Robert Mulligan, 1962).
Sem atingir a mesma excelência, mas igualmente incisivo no questionamento das injustiças praticadas pelos poderosos, vale citar o seu (também dirigiu) Cadete Winslow, de 1999.
Também prezo muito sua coragem de remar contra a corrente em obras como Olleana (idem, 1994), mostrando os exageros a que pode levar o modismo do assédio sexual: aluna com mau desempenho escolar acusa professor apenas para o retaliar e a comunidade universitária acredita preconceituosamente nas suas invencionices, destruindo a carreira do coitado.
Meu preferido, dentre os politicamente incorretos, é O jogo de emoções (idem, 1987), no qual coloca em confronto um vigarista íntegro segundo os parâmetros de sua visão de mundo, pois tem certos princípios e a eles sempre obedece, e uma aclamada schoolar que cede à sua fascinação pelo mal, mas, no limite, revela-se incapaz de aguentar a barra e acaba virando a mesa. Lembra um pouco, em espírito, a música "Like a rolling stone", do Bob Dylan.
Enfim, depois desta introdução que é mais uma dica, cheguemos ao ponto.
Um episódio jornalístico dos últimos dias me fez lembrar um diálogo do filme O sucesso a qualquer preço (d. James Foley, 1992), uma das muitas peças teatrais de Mamet que ele roteirizou para o cinema. Trata-se de uma visão corrosiva, devastadora, da atividade de vendas, uma das molas-mestras do capitalismo.
O vendedor mais hábil de uma equipe (Al Pacino) está passando a conversa num otário quando passa um colega (Alec Baldwin), mete o bedelho e solta desnecessariamente uma informação que espanta a presa.
O primeiro, inconformado, dá uma esculhambação no intrometido, repisando-lhe o abecê do ofício: nós sobrevivemos graças à p-e-r-s-p-i-c-á-c-i-a, e quem não a tem está no lugar errado.
Isto também se aplica, claro, ao jornalismo. Para registrar o que um entrevistado diz, basta um gravador; e para transcrever, um digitador. Repórter serve para avaliar se o que ele diz é toda a verdade, meia verdade ou completa mentira; e para tentar discernir o motivo de estar dizendo aquilo.
Então, quando o médico do Santos reconheceu que a volta precipitada de Paulo Henrique Ganso aos gramados poderia ter prejudicado sua recuperação de uma cirurgia, saltava aos olhos que havia algo de errado. Soltar uma informação destas à imprensa poderia até custar seu emprego. Por que o fez?
Só havia uma explicação plausível: Ganso retornou cedo demais por decisão de quem não tinha o direito de decidir. Ou seja, alguém assumiu o risco de prejudicá-lo por considerar mais importante ganhar do Corinthians na Copa Libertadores.
Deu no que deu. O atleta, visivelmente sem condições de jogo, teve atuação apagadíssima. E o Santos ficou sem a a vaga na final. Perda total.
O doutor, certamente, temia ser responsabilizado caso Ganso não tivesse condições físicas para atender à convocação olímpica, então quis deixar bem claro: a culpa não foi minha...
Hoje se sabe que sua participação nas Olimpíadas ainda é dúvida; e se lê que o jogador resolveu, por si próprio, não atuar neste domingo (8) contra o Grêmio, preservando-se para a Seleção, cujos treinamentos começam no dia seguinte.
Pior: o técnico Muricy Ramalho queira tê-lo, sim, na partida do Brasileirão e engoliu a recusa com evidente desagrado.
Fez-me lembrar o extraordinário Mané Garrincha jogando baleado, à custa de infiltrações, porque nas excursões do Botafogo havia cláusula contratual exigindo sua presença, caso contrário o clube receberia bem menos. Até hoje os insensatos continuam matando as gansas dos ovos de ouro.
Se os repórteres e comentaristas esportivos fossem mais perspicazes, ou menos comprometidos com os interesses econômicos que avassalam o futebol, contariam esta história como eu estou contando. Mas...
* jornalista e escritor. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com