A Justiça Civil de São Paulo decidiu que o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra é culpado da morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino no DOI-Codi paulista. Ele terá de pagar R$ 50 mil a Regina Maria Merlino Dias de Almeida (irmã da vítima) e outros R$ 50 mil a Ângela Maria Mendes de Almeida (sua companheira na época).
Ustra comandou tal órgão repressivo da ditadura militar entre outubro de 1969 e dezembro de 1973, período em que por ele passaram cerca de 2 mil pessoas, das quais 502 denunciaram torturas e pelo menos 40 foram assassinadas.
Já no total dos seus seis anos de operações, o DOI-Codi/SP prendeu (pelo menos) 2.355 opositores do regime militar e assassinou (no mínimo) 47 deles, inclusive o jornalista Vladimir Herzog. Como não há certeza de que todos os casos tenham sido documentados, os números reais podem ser maiores.
Militante do Partido Operário Comunista, Merlino foi preso na casa da mãe, em Santos, dia 15 de julho de 1971. Eis como seu martírio é descrito no Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos do Centro de Documentação Eremias Delizoicov:
"Luiz Eduardo foi torturado durante cerca de 24 horas seguidas e abandonado numa cela solitária. Apesar de queixar-se de fortes dores nas pernas, fruto da permanência no 'pau de arara', ele não teve nenhum tratamento médico.
Apenas massagens, acompanhadas de comentários grosseiros por parte de um enfermeiro de plantão que, em tom de brincadeira, falou ao chefe da equipe: 'Capitão, o Merlino está reclamando de dores nas pernas e que não pode fazer pipi. Vai ver que andou demais durante a noite'; e puseram-se a rir os dois torturadores. Essa cena foi presenciada por vários presos políticos que se encontravam no DOI-Codi.
As dores nas pernas que Merlino (foto ao lado) sentia eram, na verdade, uma complicação circulatória decorrente das torturas. No dia 17 foi retirado da solitária e colocado sobre uma mesa, no pátio em frente às celas. Nessa ocasião diversos companheiros puderam ver o seu estado e alguns falaram brevemente com ele. Ele queixava-se então de dormência de suas pernas que não mais lhe obedeciam, fruto de gangrena generalizada. Horas mais tarde, como seu estado piorasse, ele foi removido para o Hospital Geral do Exército, onde veio a morrer.
A reconstituição destes fatos foi feita a partir de relatos de companheiros de prisão de Merlino, como Guido Rocha, de Minas Gerais, que esteve todo o tempo na solitária com ele. As declarações de presos políticos, como as de Eleonora Menicucci de Oliveira Soares [atual secretária eepecial de Políticas para as Mulheres], Ricardo Prata Soares e Lauriberto Junqueira Filho, feitas em auditorias militares, à época, confirmaram as torturas sofridas por ele no DOI-Codi. Zilá Prestes Prá Baldi declarou que o viu depois de morto com o corpo cheio de equimoses".
Em 19 de julho a família recebeu a notícia de que ele tinha se suicidado. O corpo, entretanto, não era entregue à família que, de tanto procurar, acabou localizando-o no IML de São Paulo, com marcas de tortura, numa gaveta sem nome.
ERA USTRA QUEM "CALIBRAVA INTENSIDADE E
DURAÇÃO DOS GOLPES" DURANTE AS TORTURAS
A família de Merlino, revoltada com a impunidade criminal dos torturadores, queria, pelo menos, uma declaração judicial da culpabilidade --gritante e indiscutível-- de Ustra. Quando uma primeira ação neste sentido foi arquivada como litigância sem propósito, viu-se obrigada a voltar à carga com uma ação por danos morais e a fixar um valor para ela.
Esclarece, contudo, que não seu intuito original não era obter indenização, pois "nenhum dinheiro poderá, nunca, repor a vida de um jovem brilhante que via o seu futuro ligado à redenção da miséria do povo brasileiro".
Eis um trecho marcante da exemplar sentença da juiza Cláudia de Lima Menge:
"Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido [Ustra] participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados. Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu".
Meus parabéns ao Coletivo Merlino por esta importante vitória moral, conquistada com muito esforço, discernimento e espírito de justiça!
* jornalista e escritor. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com