Sou um viajante em mim mesmo!
Volta e meia me pego longe, assistindo ao meu passado, porém não mais como integrante, mas como espectador. Então me emociono e de acordo com a trama, se alegre ou triste, varia também a emoção. Integro-me completamente ao fluxo dos acontecimentos e assim permaneço até que algo me extraia do transe.
...É de manhã, caminho pela praia e me vejo, de súbito, envolvido com a nostálgica lembrança dos meados da década de 50 até o final dos anos 60, mais ou menos de 55 a 64 quando o País começou a sua triste deformação, a tomar outra cara.
O Brasil até então era uma grande festa, os anos dourados.
O Rio de Janeiro fervilhava e Copacabana era o epicentro dessa grande transformação.
Lá se encontrava tudo, desde os melhores hotéis, cinemas, boates, inferninhos, exposições, bares, restaurantes, as lojas de moda (masculina e feminina) mais sofisticadas até as pessoas mais bonitas e elegantes.
Era o sinônimo de sucesso e por que não dizer? Ostentação! Foco da modernidade, da transformação da liberação feminina, dos "entendimentos," da assunção de identidades e personalidades.
Passarela de exuberância quanto ao vestir, falar, se mostrar... Tudo acontecia em Copacabana.
A intelectualidade carioca trocara os "Vermelhinhos", os "Villarinhos", pela quantidade de opções, pela boêmia que o bairro oferecia: A Bossa Nova nasceu ali, Carlos Machado se apresentava ali, príncipes, reis, celebridades, se hospedavam ali.
Certa vez vi Haile Salassie o rei da Etiópia, descendente do Rei Salomão e da Rainha de Sabá, caminhando sozinho pela praia com aquele uniforme de soldadinho de chumbo, sem ninguém a sua volta ou para protegê-lo!
Era 1960!
Brigitte Bardot em 1959 ficou hospedada com seu namorado brasileiro, na Av Atlântica, bem próximo à República do Peru, edifício colado ao colégio Cícero Penna. Fez muito charme para dar entrevista, negou-se a falar mas acabou cedendo à pressão do ininterrupto plantão, uma verdadeira vigília que os jornalistas fizeram na entrada do edifício, e então, por força das circunstâncias e pra sua tranqüilidade, concedeu uma coletiva no Copacabana Palace e só assim a deixaram em paz.
Tudo isso fluia com uma naturalidade impar: artistas, celebridades por lá circulavam sem a figura constrangedora e ostensiva de seguranças. Realmente a vida era uma festa e, com certeza, pra mim também!
...Paro!
Chega a mim, de repente, interrompendo o meu desbunde pelo bairro, (desbunde justo, coerente) um episódio que marcou fundo a minha vida.
No entanto estou dividido: prossigo a trajetória da aventura invasora, ou continuo em loas à Copacabana?
...Não imponho! O pensamento? ...Ele é livre e vai se manifestar espontaneamente...
...Assim foi!
O sentimento nostálgico-romântico vence e me invade.
...Penso:- Vou amar Copacabana depois, numa outra crônica... Agora cabe apenas resgatar velhas lembranças, relatar um momento de amor, misto de angústia e felicidade! Se é que se pode ter angústia e felicidade ao mesmo tempo! Eu pude! Acho que pude!
Foi a minha primeira experiência de paixão!
Paixão de verdade, paixão de filme mexicano, de sexo, volúpia, ciúme, vontade de morte, (como esteve próxima!) doída, doida, impossível, virando o meu mundo, meus conceitos e preconceitos.
O nome da catástrofe? ...Marly - "Marly Macarrão"
O apelido se dera sobre tudo por causa da sua palidez, sua altura e a magreza esbelta do seu corpo longilíneo...
Linda! Olhos castanhos, esgazeados, olhar agressivo, arrogante, os cabelos longos e negros emolduravam um rosto oval com feições finas e delicadas. Atitudes rústicas acompanhavam o seu andar lépido e inquieto. Não era simpática... Irônica sim! Indiferença.. Era o que o seu olhar demonstrava.
Primeira vez que a vi, foi na Rodolfo Dantas: lá havia uma boate eclética e circulava uma história interessante sobre o seu dono, e porque montou o negócio.
Diziam que fora atropelado nos Estados Unidos e com o dinheiro da indenização fez o empreendimento.
Havia muitas nuances sobre o fato, mas neste momento são completamente fora de propósito. Citei apenas porque o folclore ajudava a encher a casa e divulgá-la. Os jovens frequentadores se aglomeravam na porta tentando ingressar e, como muitas vezes não conseguiam, criou-se um movimento paralelo na calçada, em função do entra e sai, e ali rolava um vivaz e intenso burburinho... Nada de drogas ilícitas, somente bebidinhas, conversa fiada e paquera...
As pessoas se contentavam consigo mesmo.
Um permanente desfile de figuras exóticas... (atenção: estamos em 1960!) enriquecia também as noites daquele pedacinho de alegria.
Lembro-me de uma jovem mulher. Muito rica... Era famosa pelo seu Chevrolet Bel Air conversível, seus cabelos ruivos, seu volume físico (a mulher era enorme!) e por viver com deboche, desdém, rodeada de gays e moçoilas airosas e disponíveis... Nada de prostituição!
Era o amadorismo libertário, repudiando a caretice opressora que submetia as mulheres e as minorias divergentes a terríveis e onerosas sanções puritanas e preconceituosas muito comuns na época.
Comentava-se que era filha de um político, que morava em uma cobertura luxuosa e que quando pedia dinheiro ao pai e ele negava, se sentava na janela e ameaçava se jogar... Já na rua contava a façanha às gargalhadas.
Não vou dizer o seu nome, mas o apelido jamais poderia omitir: Macadame! Sim macadame... Pelo seu volume enorme e compactado...
Tinha também permanentemente ao seu lado o primo, uma "bicha" muito inteligente (redundância) e engraçadíssima e sarcástica... Vez em quando deixava no ar dúvidas sobre a masculinidade de alguns representantes da "machesa" jovem... Com a voz bem afetada, riso irônico e olhos piscantes, mandava:- Hum... Fulano? Não sei não! ... A maldição se espalhava, e muitas vezes era mesmo verdade!
Uma vez me disse que ejaculara com tanta pressão e quantidade que, da cama onde estava deitado, atingira o teto, com o jorro!
Essas pessoas foram as desbravadoras de um caminho novo, inexorável, o início do processo de afirmação dos valores intrínsecos de cada indivíduo e das suas opções e preferências sociais e sexuais, enquanto seres humanos. Foram os tubos de ensaio do atual "MODUS VIVENDI".
Volto a divagar! Meu pensamento se mistura no meio daquela multidão e reencontro a minha musa!
O primeiro olhar!
Não acreditei que era pra mim!
Depois de dias de insistentes e penetrantes olhares meus mirados para dentro dela... Foi indescritível... Olhou firme, séria, sem esboçar qualquer sorriso, mas foi um olhar penetrante, demorado.
Já havia desistido, achava que não era pro meu "bico"! Ela vivia rodeada de homens ricos. Os seus acompanhantes, via de regra, tinham carro. Eu era um "duro"... Que podia esperar?
Quando aquele olhar me chegou, ela estava de saída: a porta da boate se abriu rapidamente e ela se colocou a espera do companheiro. Nesse momento virou o rosto em minha direção significativamente, mas em seguida, saiu levando a sua beleza e o meu coração apaixonado.
Não dormi. Imaginei as mais lindas fantasias de felicidade absoluta ao lado da "minha companheira", sonhei um amar eterno, inabalável.
Rolando pela cama, um turbilhão de perguntas me assolava: Quem seria? De onde viera? Seria rica? Onde morava?
Será que me olhará outra vez?...
Essesss pensamentos permaneciam comigo e onde me encontrasse a procurava. Meus olhos não paravam em busca de um novo olhar...
Porém, não consegui vê-la durante duas torturantes semanas... Voltava à Tammys (era assim que se chamava a boate) e ficava lá por horas, atento a qualquer movimento na expectativa do novo encontro.
Fui a locais onde a rapaziada se encontrava mais cedo, na tentativa de saber o seu paradeiro... Nada!
Resolvi parar, não podia ficar sempre, até de madrugada, esperando por... Esperando o quê?
Embora não saísse da minha cabeça a figura tão cobiçada ocupei-me com outras coisas...
Um vizinho me convidou para uma festa em seu apartamento e ao entrar a primeira pessoa que vi foi a "minha deusa". Fiquei atônito, trêmulo, um frio no estômago aumentava o meu tumultuado estado...
Falou comigo de forma simpática, sem grande entusiasmo, como se nunca tivesse me visto, mas aos poucos a atitude foi se desmanchando e percebi que o olhar que me dera tinha sentido, não fora nada casual.
Dançamos e em pouco tempo já estávamos carinhosamente envolvidos.
Ela falava muito, de forma simples, até simplória, mas com poucos erros de linguagem, era do sul, tinha 17 anos e não explicou o que fazia no Rio. Percebi também que o dia a dia da minha pretendida estava mais pro submundo e que talvez vivesse de forma bem irregular e quiçá, perigosamente!
Com o correr das horas soube que ela mal conhecia o vizinho e fora a festa pra provar que não roubara os brincos da sua namorada. Quem cometera o furto fora uma "amiga" que transou com ele...
Ao final da festa estávamos sós, deitados no chão em plena volúpia, mas sem ato sexual explícito.
Ao se despedir deixou no ar um provável encontro dentro de quatro dias e como não tínhamos telefone (quem tinha naquela época?) fiquei angustiado por pressentir que tal não iria acontecer.
Sentia também que estava me envolvendo provavelmente com riscos danosos, mas o que estava sentindo era maior, me impedia de recuar.
Eu era um jovem dado a namoros e conquistas românticas, tinha pavor de bordéis e demorei muito a ter a minha primeira relação sexual, que foi péssima!
Embora mantivesse contatos íntimos com quase todas as namoradas sempre preservei a integridade física, a virgindade delas... Afinal estávamos no final dos anos 50 e esses "valores" eram ainda cultuados. Fora isso sanções legais penalizavam os afoitos e atrevidos com reclusão de até dois anos.
No dia marcado ela estava me esperando, pegamos um taxi para São Conrado... Não havia motéis e eu não tinha carro. Entrei num dos poucos hotéis disponíveis pra encontros casuais e fomos para um quarto sem banheiro.
Presenciei então, em toda a sua plenitude, a metamorfose de um ser humano...
À medida que nos despíamos a criatura ia perdendo aquele semblante meio satânico e assumindo feições e modos angelicais.
Era inacreditável a delicadeza dos seus gestos, a doçura das palavras, a ternura dos afagos... Era outra pessoa... Dócil, participativa, meiga, suave... Seu hálito emanava um odor de pureza e sensualidade, o olhar era de entrega e quietude
Nos amamos incontáveis vezes naquele clima de paraíso e a cada término de uma relação, a conversa amena permitia maior entrega entre nós.
Perdi a noção do tempo e já era madrugada quando nos vimos na rua sem a menor possibilidade de transporte e num lugar absolutamente deserto. Estávamos a 300 metros da Rocinha, isto é, uma outra Rocinha, de gente humilde mas de bem.
Resolvemos caminhar em busca de condução e mal começamos a jornada, deparei com um grupo de homens a uma distância considerável... Eu era muito bom de briga, mas me assustei e fiz o comentário:- Pô Marly... Vem um monte de "cara" ali
- Puta que pariu (disse ela, revelando a outra faceta) logo hoje que não trouxe uma navalha, uma gilete, uma tesoura!!!
- Fica firme vai correr tudo bem!
Retornei calmamente à portaria deserta do hotel e esperei...
Eles passaram nos cumprimentaram e seguiram o caminho... Em seguida saía do hotel um casal que tinha nos visto à entrada e nos ofereceu carona.
Deixei Marly em casa, assim fiquei sabendo onde morava e não a larguei mais.
Um ciúme incontrolável se apoderou de mim e passei a não lhe dar mais espaço e ela, sufocada, me mandou pro inferno de maneira bruta e radical, como se não tivesse a menor importância aqueles meses todos de louca paixão.
Quase enlouqueci, dava plantão em frente à porta do prédio até o amanhecer pra ver se ela iria sair com alguém.
Soube depois que se mudara no dia seguinte ao da nossa briga!
Sofri, chorei, me desesperei, mas acabei me conformando.
Pouco tempo depois, caminhando à tarde pela Evaristo da Veiga, na calçada do quartel da Polícia Militar, escuto um chamado de um apartamento, olho pra cima e vejo Marly.
Subo, trocamos pequenas carícias e depois, muitas alfinetadas.
Em seguida uma tentativa cruel de sedução, um provocante se despir e, à minha investida a sua recusa irônica... Outra vez, mais uma, perco o controle agarro ela a força... Uma tesoura surgida do nada brilha em suas mãos. Recuo, mas com vontade de reagir... Avanço! Ela me ameaça...
Recomponho-me e saio enlouquecido de ódio e excitação.
Depois do sucedido, aconselhado por amigos e a muito custo tirei Marly da minha vida. Foram duros e longos meses, porém, bem perto do carnaval, estava com um amigo na Av Atlântica, próximo ao posto 6, havia um tumulto no trânsito por causa do baile do Popeye, no Marimbás .
De súbito sinto um toque na janela do meu lado... Ela era! Estava linda! Como nunca vira. Agitada, tentando mostrar alegria, satisfação e que iria pro baile.
Não olhou nos meus olhos, deu-me um beijo informal e sumiu no meio do trânsito e da multidão de curiosos que infestava o local.
Minutos depois reapareceu risonha fazendo menção de entrar no carro dizendo que desistira de ir à festa porque queria ficar comigo.
Entrou no carro e ainda sob o efeito da agitação falou coisas sem nexo relacionadas com a festa e o seu convite. Naturalmente, e com o jeito que me desarmava pediu para dormir comigo e fomos então para o apartamento do meu amigo que gentilmente me cedeu um dos quartos.
Fizemos, novamente, amor! Ela estava exatamente igual, porém comigo já não era a mesma coisa. Estava meio distante... O prazer foi intenso, mas diferente, não houve entrega, só um prazeroso e alucinante uso!
Quando terminamos, senti no silêncio, que uma grande tristeza tomara conta de si... Ela começava a expressar em lágrimas... Lágrimas a princípio suaves, mas sentidas, bem sentidas e que foram crescendo...
De repente começou a falar a se despojar de tudo e mostrar a desgraça que a vida que escolhera lhe proporcionava. Pediu perdão e disse que fugira de mim porque eu era de outro meio, que estava perdidamente apaixonada e toda vez que isso acontecia era terrível para ela.
Falou-me que passava fome e que muitas vezes não tinha onde dormir. Disse também que não tinha convite pra baile nenhum, fora ali pra ver se arranjava algum dinheiro e lugar pra dormir, mas que não gostava de se prostituir e terminou falando que o que ela mais queria era morrer!
Após alguns minutos daquele silêncio desesperador uma grande e silente ternura nos envolveu e fizemos amor como nunca e pela última vez! Foi uma relação doida, doída! Um gozo profundo, um sentimento ambivalente de posse e perda, pesaroso, triste.
O dia estava clareando, ficamos abraçados, mudos, apenas o som da nossa respiração nos fazia companhia.
Além disso, o perfume do seu hálito que nunca mais esqueci.
Já dia claro ela se levantou se vestiu calmamente sem dizer palavra, em seguida olhou pra mim esboçando um singelo sorriso, quase angelical: havia mais verdade naquele sorriso do que tudo que eu já presenciara em minha vida.
Aproximou-se, me deu um terno beijo, virou-se abriu a porta deixando a nossa vida para trás.
Nunca mais a vi.
Ficou na retina, para sempre, a imagem daquela porta se fechando e mais uma vez o grande silêncio que contém um definitivo adeus.
Soube depois que morrera tragicamente assassinada.
...Neste momento chego à porta da minha casa, do lar de 50 anos depois. ...Entro, estou só, absolutamente só. Apenas saudades povoam o meu coração apertado.
Lembranças de o meu despertar!
Uma vontade insana de retornar ao passado.
A porta se fecha atrás de mim, a nostalgia aumenta...
Sento-me e deixo o passado atuar...
Desejo de resgatar o que não tive!
Lembra-me Tom e Chico:
..."Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar"...
"Vou deitar e à sombra de uma palmeira que já não há"
"Colher a flor que já não dá"...
Não há mais Marly, nem Anos Dourados!
O esplendor de Copacabana... -"Ai de ti Copacabana!"
O que resta? Saudades?... Lembranças?.
...Ah! A minha "Sabiá"... Devo insistir cantando? Por que não?
Penso sereno, um sentir meio triste, meio doído, mas com a certeza da coisa intensamente vivida.
Valeu viver! Valeu "Anos Dourados", Copacabana e a minha rica e intensa juventude...
Valeu "Marly Macarrão" o grande banquete que a vida me presenteou!
..."Não vai ser em vão que fiz tantos planos de me entregar"
"Como fiz enganos de me encontrar"
"Como fiz estradas de me perder"...
"Fiz de tudo e nada pra te esquecer."
Pra Marly Macarrão, onde estiver!