Numa de suas composições simplesmente geniais, Tom Zé constatou:
"A Brigitte Bardot está ficando velha,
envelheceu antes dos nossos sonhos.
Coitada da Brigitte Bardot,
que era uma moça bonita,
mas ela mesma não podia ser um sonho
para nunca envelhecer"
O sentimento de perda é uma constante para quem envelhece: nossos sonhos, nossas referências, nossos cenários marcantes, nossos ídolos, tudo vira pó.
A morte entrou na minha vida mais cedo do que para a maioria. Reparei nisto quando a minha esposa comentou que seu tio recentemente falecido foi a primeira pessoa importante para ela a sair de cena. Aos 29 anos.
Eu, aos 20 anos, já ficara sem meu tio mais querido, o avô que erigi em modelo e cerca de 20 companheiros tombados na resistência à ditadura militar --como a alguns só conhecia pelo nome de guerra, nunca consegui fazer a conta exata.
Mas, alguns deles significavam muito para mim: o Eremias, meu colega e amigo desde o primário; o Gerson, presença constante nas minhas lutas de 1968, quando éramos ambos secundaristas; o Moisés, o melhor amigo que fiz na VPR; o Juvenal, o mais despojado de todos os revolucionários, tudo fazendo pela causa e nada querendo para si; e a Lucy, que gostaria tanto de haver conhecido em outras circunstâncias (queríamo-nos, mas eu não ousei estreitar nosso relacionamento, sendo ela uma aliada ainda desconhecida da repressão e eu um militante muito procurado).
Elza Soares e o coronel Limoeiro |
E a as perdas foram se acumulando com o passar dos anos: parentes, amigos, conhecidos, ídolos.
O Valots, com quem convivi numa comunidade alternativa e disputei uma namorada, teve morte chocante, antes dos 30. Não levou a sério seu câncer na próstata, escafedia-se do hospital, tentava curas alternativas. A ficha só lhe caiu quando a doença se tornara irreversível. Que desperdício!
Da mesma forma o Raulzito, outro que poderia ter-se salvado. Fomos amigos assíduos durante alguns meses, mas eu não o via há muito quando a notícia chegou. Mesmo assim, foi como receber um soco na cabeça. Tonteei.
Nunca falei com o dr. Sócrates, mas acompanhei tão atentamente sua trajetória --estava a alguns metros dele quando fez a célebre promessa de recusar a oferta da Fiorentina se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada-- que sua morte me abalou mais do que eu pensava (pois, afinal, era acontecimento esperado).
Agora foi o Chico Anysio, outro que não conheci pessoalmente e, como a Brigitte Bardot para o Tom Zé, marcava uma etapa distante --quando, lá pelos meus 9 ou 10 anos, a TV Record transmitia nas noites de domingo o Chico Anysio Show. Foi, provavelmente, o primeiro programa televisivo semanal gravado em teipe (na TV Rio) e repetido em outros Estados. Quase tudo era ao vivo naquele tempo.
O teipe, possibilitado o uso de externas e a edição do material, trouxe muitas novidades enriquecedoras. E o resto ficou por conta da genialidade do Chico. Foi um deslumbramento para mim.
Tinha seus vinte e poucos minutos (meia hora com os comerciais) e era dividido em vários quadros, com ele participando de todos, a encarnar vários personagens: o coronelão nordestino João Pessoa do Limeiro: um empresário italiano radicado em São Paulo, o comendador Vittorio; o garçom fanho Quem Quem; o Urubolino, torcedor do Flamengo; o Dr. Alfacinha, que talvez fosse aquele funcionário público sempre a perguntar "quanto é que eu levo nisso?". E mais não recordo.
Eu gostava, sobretudo, dos quadros dos dois primeiros; e da crônica sofisticadíssima com que Chico Anysio, como ele mesmo e não como personagem, encerrava o show.
Foram o Chico Anysio Show, o programa experimental Mobile (do Fernando Faro) e o Cinema em Casada TV Excelsior (que exibia principalmente filmes europeus de arte, por lhe saírem mais baratos) meus primeiros contatos com a vida inteligente na TV. Tiveram um papel marcante na minha vida e nos rumos que tomei.
Quantas saudades deles! Quantas saudades das minhas ilusões de então (uma frase marcante do filme Exótica, do Atom Egoyan: "Por que uma colegial nos parece tão fascinante? Será que é porque ela tem a vida inteira pela frente e nós já desperdiçamos a nossa?")!
Foram as melancólicas divagações que me ocorreram ao saber da morte do Chico.
Como tudo está distante! E como a TV aberta regrediu ao longo deste meio século, a ponto de os programas humorísticos de hoje em dia serem pó de traque comparados àquele Chico Anysio Show da TV Rio!
Do blogue Náufrago da Utopia