Os ditadores e seus ministros foram piores culpados
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Previsivelmente, a Justiça Federal no Pará rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra o famigerado Sebastião Curió, pelo sequestro e assassinato de cinco militantes do PCdoB durante a guerrilha do Araguaia.
Também como se previa, o juiz alegou que a Lei da Anistia de 1979 garante a impunidade dos carrascos da ditadura militar.
Nova escaramuça judicial terá lugar no Supremo Tribunal Federal, 5ª feira que vem (22), quando estará em pauta mais um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil contra a decisão da Corte de 2010 - aquela segundo a qual os criminosos de uma ditadura podem anistiar a si próprios durante a vigência do regime de exceção.
Como sempre digo, se Adolf Hitler houvesse tido esta brilhante idéia, a cúpula nazista ficaria a salvo do Julgamento de Nuremberg.
Um argumento da OAB é o de que os crimes contra a humanidade cometidos por autoridades estatais não podem ser anistiados por leis nacionais.
Eu não iria tão longe. Pensemos na seguinte situação: uma guerra civil em que os dois lados tenham incorrido em crimes contra a humanidade e a condição sine qua non para a cessação das hostilidades seja a anistia, em nome da pacificação nacional. Acredito que a prioridade, aí, seria o fim da matança.
A existência de brecha legal seria o critério
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Bem diferente era a situação brasileira em 1979. A luta se travara entre os paus-mandados dos tiranos (golpistas que usurparam o poder e submeteram o País ao terrorismo de estado) e civis que confrontavam o despotismo em condições de extrema inferioridade de forças.
Os crimes contra a humanidade foram cometidos pelos primeiros. Aos segundos só se podem reprovar excessos pontuais, comuns em lutas contra a tirania e quase sempre relevados pelas nações quando estas se (re)democratizam.
A Resistência Francesa ao nazismo, p. ex., foi muito mais violenta do que a nossa, descarrilando trens, mandando quartéis pelos ares, justiçando militares e colaboracionistas, etc., tendo os autores desses atos sido depois reverenciados como heróis e mártires pela França agradecida.
Ademais, já não havia combates por aqui em 1979, e sim a paz dos cemitérios.
E o que é pomposamente designado como anistia não passou de uma sórdida barganha, enfiada na goela da esquerda mediante chantagem: os militares exigiram um habeas corpus preventivo para si e seus esbirros, como contrapartida para libertar os presos políticos e permitir a volta dos exilados.
Como o STF deixou de fazer o que qualquer corte civilizada faria --jogar na lixeira da História tal caricatura de anistia-, criou-se a bizarra situação em que a OAB e os procuradores tentam corrigir uma aberração jurídica recorrendo a filigranas jurídicas.
Pior ainda é a tentativa de laçarem unica e exclusivamente os torturadores que hajam cometido crimes continuados como o sequestro --os quais, alega a OAB no seu recurso, “em regra, só admitem a contagem de prescrição a partir de sua consumação – em face de sua natureza permanente”.
Trocando em miúdos: nos casos em que a repressão executou militantes e deu sumiço nos seus restos mortais, os crimes continuam em aberto até hoje face a não terem sido apresentados os respectivos cadáveres, que é quando se daria a consumação e o início da contagem dos prazos legais. Portanto, não teriam prescrito.
Em nome do espírito de Justiça, eu lembro que isto implicaria detonar a igualdade de todos perante a Lei. Aproveitando uma ínfima brecha legal, querem botar as mãos num Curió, que matou cinco, mas deixariam belo e lampeiro o Brilhante Ustra, em cujo centro de torturas foram assassinados, sob o seu comando, mais de 40.
Matar e entregar o defunto, tudo bem. Matar e sumir com o defunto, tudo mal. Isto lá é Justiça?!
Enfim, estou teclando à toa, pois o Supremo deverá, pura e simplesmente, reafirmar a estapafúrdia decisão de 2010 em sua plenitude.
Mas, tendo sofrido o diabo nas garras desses canalhas e lamentando até hoje as duas dezenas de companheiros e amigos que eles dizimaram, fico profundamente revoltado com tais subterfúgios, indignos da luta que travamos.
Justiça só se faria levando aos tribunais, como réus, todos que cometeram crimes e, PRINCIPALMENTE, TODOS OS QUE OS ORDENARAM (comandantes militares, ministros e outros figurões, inclusive os próprios ditadores, se algum deles ainda estivesse vivo).
E nem mesmo os autores diretos conseguiremos fazer com que sejam punidos sem a revogação da anistia de 1979 e consequente reconsideração da questão por parte do STF.
Eu sou um homem de esquerda que não aceito Justiça pela metade --muito menos uma fração de Justiça.
Não me contento com o sacrifício ritual de algum bode (ou pássaro...) expiatório, enquanto os crimes perpetrados por todas as demais bestas-feras permaneceriam impunes.
Não coonesto farsas, ainda que bem intencionadas.
* jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com