Era a primeira metade dos anos oitenta e o meu amigo Carlos Fonseca, apenas por estar sem vontade de ver gente naquele dia, me deu dois convites para a pré-estréia do filme E La nave vá, de Fellini. Sou avessa a grandes badalações,mas por ser Fellini,fui.
Era impressionante o número de estrelas presentes, globais então, todas. Vi de relance Fernanda Montenegro, elegantérrima, como sempre e a acompanhava com o olhar,quando uma voz de senhor,calmo e com leve acento mineiro, me chamou a atenção. Estava atrás de mim e não sei porque me interessei pelo assunto, diga-se de passagem, desinteressante.
Dizia ele para alguém a seu lado, que haviam chegado muitos legumes e hortaliças de um determinado sítio e ensinava como tratá-los. Descreveu minuciosamente o procedimento com as couves, alfaces, etc.
Me pareceu irritado pelo fato da senhora ainda não ter tomado tais providencias. Ela apenas murmurava palavras ininteligíveis.
Perdi o interesse e conversava com meu acompanhante, quando Fernanda, a Montenegro em pessoa, se dirigiu a ele: "Como está, poeta?"
Rapidamente me voltei para ver quem era e lá estava ele, o poetaço, Carlos Drummond de Andrade, sentado exatamente atrás de mim.
Fiquei paralisada de surpresa pelo assunto corriqueiro que tanto o interessava!
Agora, anos mais tarde, voltei a me surpreender com seus poemas eróticos, impensáveis vindos daquele senhorzinho tão solene.
Voltando àquela noite,quando começou o filme, eu que tenho boa altura, não sabia mais o que fazer para me tornar pequena e não atrapalhar a visão do poeta.
Confesso que o espetáculo me encantou menos que este encontro, embora fosse um filmaço.
Hoje, entendi a poesia que há na diversidade humana, em haver tantos Carlos num só Drummond.
Semana passada o encontrei novamente em Copacabana, sentado de costas para o mar. Beijei-lhe o frio rosto de bronze. Estava calado...
Maria de Fátima Monteiro-Junho/2011