PSIQUIATRIA: ELETROCHOQUES CURAM PACIENTES OU OS TORNAM VEGETAIS?


O eletrochoque tinha papel de destaque nas torturas aplicadas pela ditadura de 1964/85

No período mais agudo da luta armada - fui preso em abril de 1970 -, o tempo era  fator primordial para os dois lados:
  1. o militante sabia que seu agrupamento estava tratando de tornar inofensivas todas as informações de que ele dispunha, então, se resistisse o suficiente (na VPR, fixamos tal limite em 24 horas), nada de mau aconteceria  lá fora;
  2. a repressão também estava ciente disto, e maximizava o impacto dos suplícios, para arrancar-lhe rapidamente tais informações, enquanto ainda possuíam valor operacional.

O choque tem exatamente a característica de ser insuportável, causando um impacto muito forte, então era largamente utilizado na  descida ao inferno. Quase sempre com a vítima pendurada no pau-de-arara (ou, no caso da Operação Bandeirantes de SP, atada na  cadeira do dragão).
O principal inconveniente, para a repressão, era o de que podia matar o torturado. Não existia nenhuma mensuração de quanto o choque poderia se prolongar, então os agentes da ditadura o calibravam de acordo com sua  sensibilidade. Se durasse pouco, não faria a vítima perder o controle; se durasse demais, a corda talvez arrebentasse...
Não conseguíamos respirar durante a descarga. Sentíamo-nos sufocar, morrer. Quando ela cessava, respirávamos sofregamente, tentando absorver todo ar do mundo. Deve ser o mesmo que estar se afogando.
Qualquer resistente com problemas de saúde, dos quais às vezes nem sequer tinha consciência, estava sujeito a expirar quando o choque se prolongava além do que ele conseguia suportar. Tanto um quase quarentão tipo Vladimir Herzog, quanto um jovem de 23 anos como Chael Charles Schreier (companheiro de Dilma Rousseff na VAR-Palmares).
Oficiais do Exército, depois que eu já passara da fase crítica, comentaram comigo que o choque era inofensivo, que só causava  efeito psicológico. Era no que queriam acreditar, para sentirem-se menos culpados.
O certo é que o  modus operandi dos torturadores demonstrava o contrário: superada a terrível etapa inicial de nossa  via crucis, eles tratavam de diminuir a intensidade dos choques. Ainda os aplicavam, mas não tão fortes -- salvo quando suspeitavam de que o militante detinha uma informação muito importante. 
Ou seja, mostravam estar conscientes de que aquela maldita maquininha (conheci dois modelos, um telefone de campanha adaptado e uma rudimentar que parecia uma ratoeira) era um instrumento de morte.
E o efeito foi bem mais do que psicológico em mim: quase enfartei no terceiro dia de prisão. E tinha só 19 anos.
Um oficial desconfiou que eu estivesse na iminência de um ataque e chamou o médico. Ele me examinou, mediu a pressão e sussurrou algo para o oficial.
Imediatamente, levaram-me para um ambiente ameno, deram-me tranquilizantes, pediram para eu me acalmar. As torturas cessaram por alguns dias.
Não era preciso eu ser muito perspicaz para perceber que chegara bem perto da morte -- algo que os verdugos queriam evitar, por causa da péssima repercussão que teve no exterior o assassinato de Schreier.
Se um estudante ainda mais jovem expirasse na tortura, a imagem da ditadura sofreria novo abalo e a pressão das organizações humanitárias internacionais aumentaria, pondo em risco créditos e intercâmbios que as autoridades brasileiras detestariam perder. Como dizem os gangstêres do cinema, "não é pessoal, são só negócios..."
E havia também os choques aplicados no pênis e no escroto, e na cabeça (com um eletrodoto atado em cada orelha).
Em termos meramente físicos, não havia diferença em ter os arames presos no pênis, encostados nos testículos ou atados nos dedos. O sofrimento provinha da descarga percorrer o corpo.
Na cabeça era pior: parecia que um raio passava por dentro de nossa mente.
É claro que nos causavam o temor de ficarmos impotentes e com danos cerebrais. Mas, desconheço algum caso concreto neste sentido -- talvez porque fossem poucos os choques aplicados nessas regiões. Novamente, a parcimônia faz crer que os verdugos temiam deixar sequelas constatáveis.

OS ESTRANHOS NO NINHO

Depois do que sofri, sempre desconfiei do uso terapêutico dos eletrochoques. Minha simpatia estava ao lado dos contingentes que denunciam tal prática como uma tortura infligida ao paciente com problemas mentais, para que ele volte a se enquadrar no princípio da realidade... por mero terror!
Meu paradigma do dito terapêuta que receita choques é a enfermeira-chefe interpretada por Louise Fletcher em Um estranho no ninho. Alguém que  pune os loucos por serem loucos e para deixarem de ser loucos.
Então, não foi nenhuma surpresa encontrar, na Folha de S. Paulo deste domingo, o depoimento de um engenheiro de 49 anos que, após 33 sessões de choque, continuou com o mesmíssimo quadro de transtorno bipolar e ainda perdeu a lembrança de fatos importantes de sua vida.
Como ele sintetizou: "benefício zero e prejudicou minha memória de maneira arrasadora".
Se minha opinião de leigo valer alguma coisa, está mais do que na hora de os psiquiatras descartarem terapias que os aproximam dos torturadores.
* Jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

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