Após Champollion, decifrar línguas antigas passou a despertar paixões. Se o egípcio dos faraós ou ainda o acadiano de Abraão foram vencidos, muitas outras línguas conservavam seus segredos.
Existia alguma receita para decifrá-los? Pedimos aos especialistas em decifrar idiomas antigos que nos levassem a uma visita aberta à Casa René-Ginouvès, Arqueologia e Etnologia, em Nanterre, em 5 de dezembro de 2007.
Sophie Laurant
As receitas dos descobridores
Às vezes, a língua se torna mais conhecida por seus escritos (a língua egípcia, grafada em hieróglifos, gerou o copta, língua atual falada no Egito). A escrita é sempre conhecida, mas não a língua, como no caso do etrusco ou do gaulês redigidos usando o alfabeto grego. Às vezes, porém, a escrita e a língua são desconhecidas! É o caso do minoano, uma língua antiga falada na Ilha de Creta, ou ainda da língua do Vale do Indo.
Enquanto isso, todos os candidatos a decifradores devem possuir os “ingredientes” e as “habilidades de mão” essenciais.
Conhecer o maior número de línguas antigas e modernas
Jean François Champollion
Esta é a condição básica. Nenhum decifrador pode escapar a esta regra. O pioneiro entre eles, o abade Barthélemy, decifrou em 1753 – em dois dias - o alfabeto palmiriano e depois, em 1754, o fenício. Ele conhecia o latim, o grego, o hebraico, além do siríaco e do copta. “Ele foi levado a supor que o palmiriano, língua falado no leste da Síria, era uma língua semítica e que somente as consoantes eram grafadas, em uma leitura da direita para a esquerda. Por outro lado, ele tentou se aproximar dos radicais do atual siríaco, o que lhe permitiu um bom progresso”, explica François Briquel-Chattonet, do laboratório de estudos semíticos antigos (do CNRS - Centre National de la Recherche Scientifique; Centro Nacional de Pesquisa Científica, em francês).
Em 1822, Jean-François Champollion decifrou, em grande parte, o complexo sistema hieroglífico porque conhecia bem o copta, a versão moderna do egípcio antigo e as diferentes línguas semíticas vizinhas (árabe e siríaco).
Francês de origem judaico-alemã, Jules Oppert (1825–1905), um dos decifradores do acadiano, em 1857, “conhecia bem o hebraico e o árabe e tinha trabalhado no antigo persa, que utilizava um alfabeto silábico, o que permitiu a transcrição, por volta do século VI antes de nossa Era, de um dialeto iraniano que começou então a ser decifrado”, afirma Brigitte Lion, mestre de conferências da Sorbonne.
A arqueóloga Aline Tenu que apresentou os três outros decifradores do acadiano acrescentou: “o oficial britânico Sir Henri Creswicke Rawlinson (1810–1895), que mostrou também ‘um talento especial para línguas’, ao passo que seu rival, o sacerdote irlandês Edward Hincks (1792–1866), dominava perfeitamente o hebraico; o terceiro, o inventor-fotógrafo inglês William Henry Fox Talbot, brilhante em grego e hebraico, conhecia ao menos cinco línguas”.
Mais próximo de nós, o inglês Michael Ventris, que conseguiu decifrar, em 1952, a misteriosa “linear B”, uma das três escritas descobertas durante as escavações em Cnossos, em Creta, em 1900 era um perfeito “poliglota de formação clássica”. Ele dominava seis línguas europeias além do latim e do grego.
E para tentar decifrar o meroítico, língua antiga do Norte do Sudão, grafada em uma escrita derivada do demótico egípcio, Claude Rilly, do Laboratório de Linguagens, línguas e culturas da África Negra (do CNRS) reuniu o máximo possível de elementos dos dialetos ainda falados pelas populações núbias. Na mesma linha, ele ainda estudou o “antigo núbio”, herdeiro medieval do meroítico, redigido em alfabeto copta em seus manuscritos religiosos.
Dispor do máximo de documentos conhecidos
Nenhuma escrita é indecifrável. Porém, para conseguir entender seu sistema e dar sentido às palavras, é necessário dispor de textos importantes, com o máximo de longas inscrições, o que vai permitir indexar as repetições, identificar as variantes gramaticais, especialmente as terminações.
Em Cnossos, o arqueólogo Arthur Evans trouxe à luz três textos diferentes: a “linear B”, que se tratava de inscrições hieroglíficas e de uma inscrição chamada “linear A”. “Infelizmente, se Michael Ventris dispôs de cerca de 6.000 documentos para a linear B, não tínhamos respectivamente 350 e 1.500 para as duas outras, o que explica que elas estejam até hoje indecifradas”, explica Françoise Rougemont, do CNRS, especialista em proto-história egeana da Casa de Arqueologia e Etnologia.
A quantidade de documentos é um fator de sucesso ainda mais importante que a escrita, mas a utilizada pela língua minoana era desconhecida. Mais tarde, Michael Ventris percebeu que o minoano era muito parecido com o grego.
Neste momento, a extensão dos textos meroíticos é ainda muito baixa, além de serem textos muito curtos para fornecer todas as chaves gramaticais, bem como a riqueza de vocabulário indispensável à compreensão da língua em sua totalidade. O mesmo problema está posto para o gaulês e sobretudo para o etrusco, grafados com o alfabeto grego: por falta de uma quantidade maior de textos mais longos de gêneros variados, essas duas línguas não estão ainda inteiramente decifradas, apesar de os pesquisadores terem chegado a obter algumas noções.
Partir de nomes próprios
Em 1801, o alemão Georg Friedrich Grotefend (1775-1853) apostou que iria decifrar uma língua desconhecida a partir de inscrições também desconhecidas. Ele iniciou em duas inscrições cuneiformes gravadas nos monumentos reais do império persa (559-332 AC) e partiu da hipótese que em textos tão solenes a primeira palavra deveria corresponder ao nome do soberano. Assim, ele isolou dois nomes próprios diferentes.
O filólogo conhecia os reis persas pelos textos gregos e eliminou aqueles cujo nome era muito curto ou muito longo para atender essa visão. No meio de um dos textos, se encontrava um nome próprio que iniciava a segunda inscrição. Grotefend deduz então que um dos reis é “filho” do outro.
Segunda hipótese: o termo “rei” deveria aparecer junto a esses nomes. Com efeito, ele o encontrou diversas vezes. Todavia, em um dos textos a expressão “filho de” não era seguida da palavra “rei”: ele percebeu que se tratava de “Dario” cujo pai não era rei. A outra prancheta deveria, neste caso, estar ligada ao rei Xerxes, “filho de Dario”. A partir dessas expressões, “ele identificou corretamente 9 caracteres, ou seja, um quarto do alfabeto do persa antigo”, explica Francia Joannés, especialista em história da Mesopotâmia na Universidade de Paris VIII. O inglês Rawlinson conseguiu decifrar (o texto) antes de se dedicar ao acadiano.
Antes dele, o abade Barthélemy e depois Jean-François Champollion tinham também utilizado os nomes próprios para atribuir seu valor aos primeiros caracteres. Porém, eles tiveram uma vantagem em relação a Grotefend: conheceram antes, graças a textos bilíngues, a tradução dos nomes que tentavam compreender...
Encontrar uma “pedra da Roseta”
Pedra da Roseta
A célebre pedra, descoberta em 1799, na cidade de Roseta, no Delta do Nilo é uma lápide de granito negro gravada por ordem do faraó Ptolomeu V (205-180 AC).
Ela traz uma inscrição trilíngue: em hieróglifos, a forma de escrita que tanto intriga os estudiosos; em demótico, a forma de escrita cursiva do Egito tardio que não foi decifrada naquela época; e enfim em grego, forma de escrever que jamais caiu no esquecimento.
Graças ao grego, Champollion experimentou uma ideia simples que os demais pretendentes à compreensão do egípcio antigo não tiveram: ele contou o número de hieróglifos e o número de palavras gregas. Resultado: “cada hieróglifo, descreveu ele, não exprimia por si mesmo uma única ideia, dado que havia 1419 símbolos hieroglíficos correspondendo a apenas 486 palavras gregas”.
Assim, os hieróglifos tinham um valor fonético... Porém deveria haver mais para que eles fossem um simples alfabeto. O sistema deveria ser misto: ideográfico, silábico e alfabético. Uma vez comprovado esse princípio, ele partiu do nome de Ptolomeu, fácil de reconhecer, já que ele está rodeado por um “cartucho”, e identificar os caracteres que o compunham. Depois ele verificou os “cartuchos” oriundos de outras estelas.
Menos conhecida, mas igualmente importante, é a inscrição trilíngue de Behintun, atualmente no Irã: esse longo texto de propaganda, gravado num rochedo por Dario I para legitimar seu acesso ao poder, foi redigido em persa antigo, acadiano e elamita. O persa antigo já está, em grande parte, decifrado (o elamita ainda é mal compreendido).
Os quatro decifradores do acadiano apresentaram grande interesse por essa inscrição para poderem avançar na direção da compreensão dessa outra língua, também ela grafada em caracteres cuneiformes. De modo similar, o abade Barthélemy partia a cada vez de uma inscrição bilíngue em greco-palmiriano e depois em greco-fenícia para ler esses dois alfabetos.
Se os linguistas avaliavam que uma peça bilíngue não é indispensável, conhecer com maior precisão, graças a uma tradução, o sentido de um texto que é necessário decifrar, dá uma vantagem incomparável.
Aplicar um raciocínio científico
O abade Barthélemy é “tipicamente um intelectual da época do Iluminismo. Ele se dedicou a decifrar o palmiriano como a uma senha, um código secreto. Antes dele, as tentativas falhavam porque as pessoas procediam por analogia com a forma das letras de um texto para outro. Ora, nos sistemas alfabéticos, as formas simples – como o círculo ou o traço – estão sempre presentes, sem que isso signifique o que quer que seja”, explica Françoise Briquel-Chatonnet.
O acadiano foi decifrado simultaneamente por quatro estudiosos de personalidades e aos percursos bem diferentes e, entretanto, representativos dos caminhos que naquela época conduziam à ciência. Jules Oppert beneficiou-se na Alemanha de uma boa formação universitária, de início em direito e depois em linguística, quando esta jovem ciência dava seus primeiros passos. H. Rawlinson, brilhante soldado de sua Majestade no Oriente, direcionou suas pesquisas para o terreno, quase aventureiro, beneficiando-se diretamente das primeiras grandes descobertas da arqueologia oriental.
Ao contrário, Edward Hincks foi um estudioso “doméstico”, da geração anterior cujo rigor de raciocínio era impressionante. Ao fim, William Henry Fox Talbot, um inventor genial, um dentre muitos que o século XIX produziu, passou com facilidade e paixão das experiências com a fotografia (ele foi o inventor do calótipo, primeiro aparelho de fotografia a usar o negativo), a matemática e a física ao estudo do cuneiforme!
A publicação de “A descrição do Egito”, em 1802, que trazia numerosos desenhos de inscrições hieroglíficas, abriu o caminho. Depois, as grandes expedições arqueológicas à Mesopotâmia enviaram cópias e documentos originais à Europa. Desta forma, os pesquisadores europeus passaram a dispor de versões confiáveis das inscrições que estudavam e de uma documentação renovada pelas descobertas.
Cuidado com os preconceitos
Conhecer sua língua modifica em profundidade nossa visão da história de um povo. Ainda era necessário aceitar os fatos. Assim, os Hititas, conhecidos apenas na Bíblia e pelos textos egípcios, estavam localizados na Síria. Seria necessária a descoberta, em 1906, de cerca de 10.000 plaquetas, na locação de Bogazkale, na Turquia para que fosse admitida a presença daquele povo naquela região. Pouco a pouco, veio à tona que sua língua fazia parte da família indo-europeia. Graças ao estudo de plaquetas bilíngues ou trilíngues, ela foi decifrada até 1930.
Todavia, a história das populações sempre permanece submetida às tentações de fazer comparações, ao desejo de hierarquizá-las entre “civilizadas” e “bárbaras”. Assim que o acadiano foi decifrado, os estudiosos observaram que uma outra língua, que parecia muito mais antiga e sem parentesco conhecido era igualmente escrita com os mesmos caracteres cuneiformes. Era uma verdadeira língua ou apenas um dialeto primitivo? E de onde vinha ela? Que povo a usava?
Alguns afastavam o raciocínio: já que não se tratava de uma língua semítica, ela era ariana e isto provava a superioridade dos Arianos sobre os Semitas... Durante cerca de meio século, a querela iria envenenar os estudos do... sumeriano, apesar de Jules Oppert que refutava as teses “arianistas” ao relento racista, mas mantinha com razão que se tratava de uma verdadeira língua. Em 1905, graças à descoberta dos arquivos sumerianos de Nipur e Telo, François Thureau-Dangin a decifrou e publicou “As inscrições de Sumer e Acad” em que ele mostra a tradução, feita pela primeira vez, desses textos antigos, de cerca de 5.000 anos, os mais antigos escritos conhecidos pela humanidade.
Traduzido do francês por A. Pertence