O impedimento à uma educação crítica e de qualidade serve perfeitamente aos propósitos dos detratores da democracia
Se há algo que democracia e educação têm em comum, além do fato de uma não prescindir da outra, de não existir em plenitude sem a outra, é a profunda ameaça que paira sobre ambas no Brasil atual. Combalida desde o golpe parlamentar-jurídico-midiático que derrubou a presidenta Dilma Rousseff em 2016, a democracia enfrentou mais um grave abalo nos últimos dias, com a negação do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Federal (STF), num julgamento que não só rasgou a Constituição Federal — em especial o inciso LVII do artigo 5º da Carta Magna, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” — como contribuiu para solapar o próprio Estado Democrático de Direito.
No episódio, como se não bastassem todas as suas inconstitucionalidades e os vícios de um julgamento eminentemente político, a chantagem velada do comandante-geral do Exército, general Eduardo Villas Bôas, feita na véspera pelo Twitter foi o elemento estarrecedor e tenebroso num cenário em que a ruptura democrática se escava cada vez mais.
Nessa relação simbiótica com a democracia, a educação sofreu danos consideráveis durante a ditadura civil-militar brasileira de 1964 a 1985, os quais são sentidos, dentro e fora das salas de aula, ainda hoje. Tantos que a existência de quem aplauda a manifestação do general e/ou reivindique uma intervenção das Forças Armadas é só um dos mais evidentes — e assombrosos — exemplos. Entre eles, está justamente o impedimento ao desenvolvimento pleno de uma escola pública, gratuita, laica, de qualidade socialmente referenciada e sem discriminações de qualquer espécie, bem como o subjugo do poder econômico e do capital, responsável pela escancarada financeirização e desnacionalização do ensino superior e pela já não tão mascarada e cada vez mais contundente privatização da educação básica à custa de dinheiro público.
Quatro anos atrás, quando do aniversário de 50 anos do golpe de 1964, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee publicou uma edição especial da Revista Conteúdo inteiramente dedicada a tratar dos impactos do regime ditatorial sobre a educação. A publicação comparou os efeitos da ditadura no ensino a uma bomba cujos efeitos, além da violência e da repressão — com estudantes, professores e trabalhadores em estabelecimentos de ensino perseguidos, torturados, mortos —, incluíram a aterrorização, o obscurecimento da visão crítica e a quase incapacitação do movimento pedagógico de interferir politicamente para a construção da soberania e do desenvolvimento social.
As mesmas forças que atacam novamente a democracia são aquelas que golpeiam a educação. Os impactos nefastos do governo ditatorial sobre o ensino — o controle da administração universitária, o exílio de professores, o comprometimento da qualidade da educação pública (aliado à ruptura de um modelo econômico de distribuição de renda atrelada ao arrocho salarial), a perda de qualidade na formação dos educadores, a mudança curricular (com a retirada de disciplinas cruciais para o desenvolvimento da reflexão crítica) — poderiam ser enumerados hoje como consequências do novo golpe. Está aí a reforma do ensino médio e a recente divulgação do texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para essa fase da educação básica para comprovar isso.
Está aí a tentativa do Ministério da Educação (MEC) de ferir a autonomia universitária ao questionar a legalidade dos cursos sobre o golpe de 2016. Está aí o processo de financeirização do ensino e o tratamento da educação como mera mercadoria, e não como direito de cada cidadão, como determina a Constituição. Está aí o fim de um ciclo de políticas afirmativas de inclusão. Está aí a desprofissionalização do magistério. Está aí o movimento Escola Sem Partido, a censura e a criminalização de professores. Está aí todo um contexto de afronta ao ideal de educação transformadora e cidadã.
A luta em defesa do Estado Democrático de Direito é também uma luta em defesa da educação. Porque o impedimento à uma educação crítica e de qualidade serve perfeitamente aos propósitos dos detratores da democracia.
José de Ribamar Virgolino Barroso é coordenador da Secretaria de Finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee