Pela segunda vez faço uma dobradinha com meu velho companheiro de batente na Agência Estado e amigo do peito há quase três décadas, Apollo Natali. Para quem não se lembra, em maio ele nos brindou com uma belíssima reportagem sobre o Bixiga (vide aqui), que me inspirou a escrever de bate-pronto uma crônica sobre a Mooca de outrora (vide aqui).
Agora, confesso, meu texto veio antes, antecedendo em quatro anos o seu desabafo contra os que surfam na onda do Hino Nacional sem terem compromisso nenhum com a grandeza da Nação ou com a dignidade do nosso povo.
Mas, nem que seja para matar a saudade dos tempos em que éramos atrações permanentes de um serviço noticioso criado pelo próprio Apollo e distribuído aos clientes da AE de todo o Brasil, aproveitei a chance para tabelar com ele de novo. Sem nenhuma pretensão de comparar-nos a Pelé e Coutinho, ou Sócrates e Palhinha...
Salvo na postura que sempre mantivemos, de não nos limitarmos ao funcionalmente necessário, procurando oferecer algo mais aos nossos públicos; no caso, um pouco de reflexão, um tantinho de arte.
Éramos daqueles que encaravam o jornalismo não apenas como ganha-pão, mas também como sacerdócio, missão: travando uma batalha que sabíamos de antemão perdida, tentávamos manter vivo o culto à verdade, resistindo como podíamos à desinformação programada da indústria cultural.
APOLLO NATALI: "ALGO DE BOM E ALGO DE RUIM A RESPEITO DO HINO NACIONAL"
Tenho algo de bom para falar do Hino Nacional Brasileiro. E também algo de ruim, por questões de busca de lucidez para enxergar o que acontece de lamentável neste nosso país desde o seu nascimento.
Começo pelo bom, a história curiosa e bela do Hino.
Francisco Manoel da Silva, que fez a música, e Osório Duque Estrada, a letra, não se conheceram. O músico morreu em 1865. O poeta nasceu em 1870, viveu até 1927, foi abolicionista, republicano e membro da Academia Brasileira de Letras.
A atual letra do Hino Nacional Brasileiro é a segunda. A primeira, de Ovídio Saraiva Carvalho da Silva, foi apresentada em público pela primeira vez em 1831, ano da abdicação de D.Pedro I e continha expressas alusões à monarquia.
Com a proclamação da República, em 1889, o primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, tratou de substituir a letra. O poeta Osório Duque Estrada foi encarregado dessa tarefa.
Francisco Manuel da Silva |
Curioso é que a atual letra só foi oficializada em 1922, faz 90 anos. Nossos pais, todos os que nasceram até o ano de 1921, não cantavam essa letra. Quase que também os revolucionários paulistas de 1924.
O autor da melodia, Francisco Manoel da Silva, era carioca e viveu entre 1795 e 1865. Estudou música com o Padre José Maurício. Entre seus trabalhos mais inspirados está o Hino da Coroação do Imperador D. Pedro I. Integrou a Real Câmara de Música e foi o fundador do Conservatório de Música do Brasil.
Algo bom é saber também que a melodia do nosso Hino Nacional, considerada uma das mais líricas do mundo, inspirou o compositor norte-americano Gottchalk na composição da Grande Sinfonia Sobre o Hino Nacional Brasileiro. Ao contrário da letra, a melodia sobreviveu ao Império e foi adotada também pela República logo nos primeiros tempos do Governo do Marechal Deodoro.
Quando toca o Hino -uma visão psicanalítica ou sociológica aprofundada talvez explique- há choro, postura de respeito, arrepios de emoção, atletas não se contêm nos pódios, as lágrimas escorrem. Talvez porque o homem tenha medo de ser livre, agarra-se a um todo, precisa pertencer a um grupo, religião, ideologia, um clube de futebol. O hino da pátria é esse porto seguro de todos. Ainda é o bom.
Osório Duque Estrada |
Olha o ruim. Quando se toca o Hino, em instalação de mandatos, inaugurações oficiais, nas cerimônias de premiação das competições esportivas, me sinto indignado, pensando que nessas ocasiões os mandantes do país, aqueles que escrevem a História –amiúde podre– continuam agarrados cinicamente aos seus tronos absolutistas, certos do consentimento explícito da emoção e da boa fé popular para seus desmandos.
Aos acordes emocionantes do hino considerado o mais belo do mundo, fico indignado com nossa Justiça indigente, anestesiada quanto à boa prática da ciência da convivência, o Direito.
Igualmente anestesiada, aos acordes do Hino, permanece a consciência do que é lamentável, injusto, corrupto, no pais. Chorem na rampa, nos pódios, nas cerimônias, ao som do Hino Nacional, os que têm sede de Justiça, porque em nenhum outro lugar serão saciados!
LUNGARETTI: "BEM MAIS VIRIL E ALTANEIRO ERA O HINO DA INDEPENDÊNCIA!"
Hinos nacionais têm importância relativa para quem quer construir uma realidade diferente, e não apenas representações simbólicas diferentes da mesma e inaceitável realidade.
Ainda assim, em cada 7 de setembro aumenta a minha inveja dos franceses, que têm um hino eletrizante, enquanto somos obrigados a nos contentar com uma marcha originalmente composta para banda, embalando versos rococós que mais da metade dos brasileiros não consegue decorar e cujo significado, provavelmente, nem um décimo compreende.
A Marselhesa foi criada em 1792 por um oficial do exército francês e músico autodidata, como encorajamento os soldados que partiam para combater as tropas austríacas. Inicialmente se chamou Canto de guerra para o exército do Reno.. Adotada pelas tropas revolucionárias e pelo povo, espalhou-se por todo o país e foi oficializada como hino nacional em 1795.
Imagens fortíssimas: os cidadãos sendo chamados à luta para combater ferozes soldados estrangeiros que vinham degolar seus filhos e suas esposas, os combatentes exortando a própria Liberdade a ombrear-se com aqueles que a defendiam...
E o refrão de arrepiar:
"Às armas, cidadãos,
formai vossos batalhões!
Marchemos, marchemos!
Que um sangue impuro
encharque o nosso solo!"
Enquanto isso, por aqui o sol da liberdade teria brilhado como consequência do brado retumbante de um príncipe estrangeiro que resolveu mudar sua devoção sabe-se lá se por motivos nobres ou por mero pragmatismo político; afinal, uma das cartas que o levaram a soltar o grito do Ipiranga foi a da esposa, Maria Leopoldina, advertindo-o de que "o pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece".
Aliás, o chamado Hino da Independência é bem mais viril e altaneiro, não tanto pela música que D. Pedro I teria composto algumas horas depois do grito, mas em razão dos versos de Evaristo da Veiga, professor que simpatizava com os poetas da Inconfidência Mineira.
Não há nada, no Hino Nacional inteiro, com impacto remotamente equiparável ao deste refrão:
"Brava gente brasileira,
longe vá, temor servil;
ou ficar a Pátria livre,
ou morrer pelo Brasil!
Ou ficar a Pátria livre,
ou morrer pelo Brasil!"
Traduzem o calor e as paixões do momento: Evaristo os compôs antes mesmo do grito, em agosto de 1822. Uma de suas mutações acabou se casando com a moldura sonora de D. Pedro I.
Já a letra de Osório Duque Estrada só foi acoplada ao Hino Nacional em 1909, depois de vencer um concurso realizado três anos antes. Do membro nº 2 da Academia Brasileira de Letras só poderia mesmo esperar-se algo tão artificial, rebuscado e flácido.
Ideia maluca: o Geraldo Vandré de outrora seria o nome ideal para compor um Hino Nacional que realmente fizesse jus ao povo brasileiro. Uma síntese de "Disparada", "Caminhando" e "Paixão Segundo Cristino".
Não sei se o Vandré atual daria conta do recado. Provavelmente, não. Agora ele só faz hinos para a FAB.