Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções
Capítulo VIII
David Miller e as Perspectivas de Justiça Social “Contra o Igualitarismo Global” – Parte 2
Os Quatro fundamentos necessários para uma teoria de justiça social ainda são válidas para o mundo atual?
Conforme mencionado na Parte 1 deste Capítulo, David Miller afirmara que, quando nos primeiros anos do século XX, se cristalizou a ideia de justiça social, esta apropriou-se de certos fundamentos, ou compromissos, obrigações, (assunções) acerca da ordem social que, embora nem sempre fossem explícitas, são, no entanto, o fundamento dessa mesma ideia. Miller definiu que pelo menos quatro, que chamaríamos de fundamentos (“assunções”, na tradução portuguesa) deste tipo existiram.
Haverá quem queira acrescentar a esta lista uma quinta assunção, como seja a da existência de uma categoria suficientemente vasta de pessoas cujos interesses sejam servidos pela justiça social, entendendo-se por isto que, se não houver bastantes pessoas materialmente interessadas em alcançarem a justiça, ela não poderá funcionar como ideal político eficaz.
Todavia, esta assunção não é das que muitas vezes são feitas pelos teóricos da justiça social, que têm tendência para serem bastante idealistas nos seus pressupostos neste plano da motivação humana (isto é, presumem que a generalidade das pessoas almeja a justiça por ela própria, independentemente dos seus interesses materiais). Por enquanto, esta quinta assunção deve ficar entre parênteses, sendo comentada mais adiante.
A principal pergunta que David Miller dizia que se devia fazer consistia em saber se as primeiras quatro assunções ainda são válidas no mundo atual. Argumenta-se frequentemente que nenhuma delas o é. Muitos dos argumentos têm a ver com os alegados efeitos da globalização. Antes de mais, diz-se que deixou de ser realista a assunção de que as pessoas vivem em comunidades políticas distintas, onde as relações que desfrutam com os outros membros são de natureza diferente daquelas que têm com as pessoas do exterior. As fronteiras tornaram-se porosas devido, em parte, ao simples fato de as pessoas poderem deslocar-se com relativa facilidade entre diversos lugares, residindo num, trabalhando noutro, passando férias num terceiro, e assim sucessivamente, e, em parte, porque as identidades e as lealdades das pessoas se tornaram cada vez mais complexas. Em vez de as pessoas se sentirem pertencentes de uma comunidade nacional distinta, as suas identidades estão fraturadas segundo grupos étnicos, regiões, filiações transnacionais de vários tipos, e assim por diante. Portanto, na medida em que a ideia de justiça social pressupõe que a comunidade primacial a que cada pessoa pertence é uma comunidade política única que define um universo de distribuição, a ideia torna-se caduca.
Pode levantar-se uma questão paralela quanto à estrutura institucional fundamental. Se atentarmos no que, atualmente, determina as desigualdades de oportunidades na vida — diz-se —, já não se vislumbra um só conjunto de instituições interdependentes a funcionar no interior de fronteiras nacionais.
Em vez disso, encontramos muitas instituições com os mais variados objetivos e com um âmbito global. A categoria do emprego que se tem é e sempre foi da maior importância no que respeita ao quinhão de bens essenciais que se obtém, mas agora isso depende grandemente dos mecanismos do mercado global, o que torna difícil tanto prever como controlar o funcionamento das instituições. Portanto, uma vez mais, a justiça social escapa à nossa compreensão na medida em que nos pede que submetamos a estrutura fundamental aos ditames da ética, como, por exemplo, a norma de salário igual para trabalho igual. Se nem sequer somos capazes de compreender em teoria, e muito menos controlar na prática, o conjunto de instituições que determinam atualmente os rendimentos individuais, não podemos esperar aplicar essas normas.
Da mesma forma, o Estado vai tendo cada vez mais dificuldade em modelar as instituições de acordo com as exigências da justiça social porque qualquer afastamento da ortodoxia dos princípios da economia de mercado livre é suscetível de ser contraproducente. Por isso, a imposição da tributação progressiva ou os sistemas de proteção dos direitos dos trabalhadores — para não falar de programas mais radicais de mudanças econômicas — levarão as grandes empresas internacionais a deslocar as suas estruturas industriais e o pessoal bem pago para paragens que lhes pareçam mais aprazíveis. Há mesmo analistas que preveem que o Estado desaparecerá como entidade unitária, sendo substituído por uma variedade de instituições que fornecerão serviços aos seus clientes por contratação: comprar-se-á proteção pessoal a um organismo, assistência médica a outro, etc. Obviamente, se o principal organismo de justiça social for desmontado ou começar a ruir, a ideia torna-se irrelevante na prática.
Finalmente, afirma-se que o caráter multicultural das sociedades contemporâneas leva a que seja impossível chegar a acordo acerca da justiça social, mesmo que confinemos a nossa atenção a grupos do interior das fronteiras dos Estados existentes. Onde as sociedades estão divididas segundo critérios linguísticos, étnicos ou religiosos — afirma-se — não é razoável contar com qualquer consenso sobre questões de justiça distributiva. Os vários grupos não só discordarão entre si na prática, como as suas divergentes concepções do mundo são tais que nem sequer existe uma base sobre a qual seja possível erguer tal consenso. Assim, está condenada a esperança mais recente de Rawls de que grupos que professam diferentes doutrinas religiosas, morais e filosóficas possam, apesar disso, ser capazes de chegar a um largo consenso sobre princípios de justiça. Não é simplesmente razoável esperar que as pessoas renunciem ou ponham de lado as suas mais profundas convicções para conseguirem chegar a acordo sobre os princípios de justiça.
Ao lado desta afirmação sobre desacordo político surge outra respeitante à questão fundamental da justiça. Tradicionalmente, justiça social quer dizer justiça na distribuição de bens materiais. Tal como indicado por Miller, os primeiros teóricos estavam preocupados, acima de tudo, com a maneira como as instituições econômicas e sociais repartiam a liberdade, a propriedade, a riqueza e o rendimento pelos diferentes grupos sociais. Mais tarde, à medida que se expandia o papel do Estado, acrescentou-se a esta lista o acesso à educação, a assistência médica e as pensões de velhice. Porém, afirmou-se, quando as sociedades se tornam multiculturais, o significado político das questões de distribuição material declina para ser substituído por questões de reconhecimento cultural. As pessoas passam a estar menos preocupadas com as desigualdades de riqueza e rendimento e mais preocupadas com a maneira como certas identidades culturais são reconhecidas e promovidas pelo Estado e outras são postas de lado. Estas continuam a ser questões de justiça em sentido lato, mas não são questões de justiça distributiva, tal como os filósofos políticos, de Mill a Rawls, as entenderam. Portanto, o problema não é meramente o de se tentar chegar ao consenso sobre a justiça social; o problema reside no fato de a própria justiça social, no seu sentido tradicional, passar a ser uma questão de somenos importância para os grupos cuja preocupação principal é a luta pelo reconhecimento cultural.
Os vários grupos de interesses sobrepõem-se e interceptam-se. Se a repartição dos benefícios ou dos bens essenciais que alguém recebe depender dos mecanismos de numerosas instituições de diferentes níveis, sem um organismo único a superintender o todo, é inelutável que surjam anomalias gritantes. Dois vizinhos podem ter características individuais semelhantes de entre as que, em princípio, são objeto da justiça distributiva, mas, porque as suas filiações são diferentes — pertencem a grupos étnicos diferentes ou um deles ligou-se a algum grupo de interesses transnacional —, os benefícios que recebem poderão ser bastante diferentes. Isto será inevitavelmente sentido como uma injustiça e levará o vizinho a quem couber o pior a ressentir-se. Os sistemas de justiça concorrentes só podem coexistir quando os grupos que os adotam são de fato autônomos e mal conhecem a situação uns dos outros. Mas não é este o retrato do mundo contemporâneo que estão a pintar-nos nem a alternativa é praticável. Se o retrato for fiel, as perspectivas de justiça social, com exceção, talvez, das estritamente básicas, são desanimadoras.
Não há dúvida, segundo David Miller, de que a busca de justiça social e o destino do Estado-nação estão estreitamente ligados um ao outro; se este último se desvanecer brevemente no esquecimento, a justiça social desaparecerá com ele. Dizer que a justiça social pressupõe o Estado-nação não é, no entanto, dizer que a estrutura institucional do Estado-nação tenha de permanecer exatamente como é agora.
É evidente que essa estrutura está a modificar-se bastante rapidamente, em particular porque algumas das funções que eram tradicionalmente realizadas ao nível nacional estão a ser subdelegadas em organismos regionais e supradelegadas em organismos transnacionais, como a União Européia. A questão fundamental, porém, é que o Estado-nação continua a ser o lugar por excelência da legitimidade política. É o organismo do qual as pessoas esperam obter justiça, quer quando está diretamente implicado na atribuição de recursos e no fornecimento de serviços, quer quando, por outro lado, está a tutelar o funcionamento de organismos subordinados, como os governos locais ou as assembleias regionais, ou ainda a negociar com outros Estados a harmonização internacional da legislação e da política social. Mesmo quando são delegadas funções ou são privatizados serviços, como os transportes ou o pagamento das pensões, as pessoas continuam a considerar que é do governo nacional a responsabilidade de tutelar essas atividades e de intervir e concertar quando as coisas vão mal.
Por que será assim? Em parte, acredita David Miller, tem a ver com o fato de os Estados continuarem a controlar os territórios onde as pessoas vivem, no sentido weberiano de reclamarem com êxito o monopólio do emprego legítimo da força física nesses territórios. Por outras palavras, os Estados continuam a fornecer a segurança física elementar, o que é importante porque a grande maioria das pessoas não tem outra opção senão permanecer no território onde nasceram. A imagem de indivíduos com liberdade para poderem selecionar os seus lugares de residência só se aplica, quando muito, a uma pequena minoria de indivíduos bem pagos que, além disso, não estão amarrados por laços sociais ou familiares a determinados lugares. Para os restantes, uma vida tolerável depende da eficácia do funcionamento do Estado da sua terra natal. Em parte também tem a ver com as credenciais democráticas do Estado: as pessoas não só acham que ele tem responsabilidade pelas suas oportunidades de vida como podem pedir-lhe contas através do sistema eleitoral quando as coisas correm mal. Nenhuma outra instituição desfruta atualmente deste grau de legitimidade democrática, o que não quer dizer, com certeza, que nenhuma outra venha a tê-lo, mas apenas que o nosso diagnóstico deve ser dirigido ao que as coisas são realmente, e não ao que poderão ser num futuro imaginário.
O quadro que nos pintam é o de um capital internacional móvel que seleciona os seus locais de produção de acordo com a lógica simples do custo-benefício, preferindo, portanto, instalar as suas atividades em regimes de baixa tributação e de mercado livre. Em contraponto a este quadro há que apresentar o substancial corpo de provas que demonstra que para haver produção com êxito é necessária uma força de trabalho instruída e motivada, um meio social seguro, bons serviços de assistência sob a forma de cuidados de saúde de alta qualidade, e assim por diante. Por outras palavras, mesmo o estereótipo do capitalista à procura do lucro máximo e sem lealdades nacionais preferia investir e produzir, não na base de um estreito cálculo econômico, mas tendo em conta a generalidade das condições sociais nos territórios que estivesse a considerar. Isto também nos faz lembrar como é enganador encarar a eficiência econômica e a justiça social simplesmente como ideais antagônicos em que os ganhos em justiça social fossem sempre conseguidos a expensas da eficiência. Se considerarmos os princípios nucleares da justiça, como a ideia de que os bens e os serviços essenciais deviam ser distribuídos de acordo com as necessidades ou que os recursos educacionais, quando escassos, deviam ser atribuídos por mérito, podemos ver que a aplicação destes princípios será geralmente mais benéfica do que prejudicial ao funcionamento eficaz de uma economia de mercado. Esta questão foi perfeitamente compreendida pelos primeiros adeptos da ideia de justiça social, que defendiam que a existência de um conjunto de instituições sociais justas não se destinava apenas a garantir um tratamento justo a cada indivíduo, mas também a assegurar a sobrevivência e a prosperidade nacionais — em sintonia com o espírito da época, no pensamento dos pioneiros liberais e socialistas desta noção há muitas vezes um fundo de darwinismo social.
Sem irmos até ao ponto de dizermos que um regime de justiça social dá efetivamente à sociedade que o adota maior competitividade na economia mundial, podemos dizer, pelo menos, que não há razão para a considerarmos menor. E é isso que cria o espaço onde os Estados podem promover os ideais de justiça social que os seus cidadãos preferem ao elaborarem legislação laboral, ao fazerem política social, etc.
Encontramos, por exemplo, uma concordância generalizada entre ricos e pobres, homens e mulheres, acerca do princípio de que os empregos e os cargos deviam ser atribuídos na base do mérito, mas uma discordância significativa sobre até que ponto os empregos e os cargos são efetivamente atribuídos segundo critérios meritocráticos, sendo que os grupos dos menos favorecidos estão mais inclinados a achar que a sua sociedade funciona de maneira injusta. É de crer que este modelo se repita entre os grupos étnicos que estarão em concordância sobre princípios gerais e, simultaneamente, terão diferenças de percepção acerca, por exemplo, da amplitude da discriminação racial nas sociedades contemporâneas.
Os fatos de que dispomos tendem a confirmar este quadro: um estudo americano explorou as preferências de diferentes grupos étnicos — europeus, asiáticos, hispânicos e afro-americanos — em relação a várias normas de justiça processual e descobriu que convergiam em grande escala. De acordo com os autores deste estudo, o problema principal que o multiculturalismo coloca à justiça social não é o de os diferentes grupos serem atraídos para diferentes princípios, mas o de, onde as identidades de grupo se tornam muito fortes em detrimento da abrangência das identidades nacionais, se tornar mais difícil motivar as pessoas para alargarem o universo da distribuição de modo a incluir nele membros de outros grupos; por outras palavras, o alvo da justiça distributiva tende a contrair-se, de modo que as pessoas se tornam indiferentes ao tratamento dado aos que são exteriores ao grupo.
A comunhão de identidades nacionais e os ideais de cidadania conservam muita da sua força, em parte, porque, na realidade, as filiações de grupo são muitas vezes entrecruzadas: posso pertencer etnicamente a um grupo, mas os meus colegas de trabalho podem provir de muitos outros, os clubes de que faço parte podem ter também outras filiações, e assim sucessivamente.
Estas observações apontam para conclusões mais amplas quanto às perspectivas da justiça social. Miller crê que o principal obstáculo à justiça social nas democracias liberais desenvolvidas é político: o problema é o de mobilizar um consenso político a favor da justiça que possa modelar a forma de as pessoas agirem como votantes, atores políticos, ativistas políticos, etc. Por outras palavras, o problema não é obter a aprovação de princípios de justiça em abstrato. Nem é um problema de impotência política, de as instituições políticas não terem capacidade de fazer as mudanças que a justiça requer. O problema é antes as pessoas cooperarem para pôr aqueles princípios em prática num meio social que tende a ocultar os laços que nos unem.
O declínio do movimento sindical (que Miller considera irreversível) para isso muito contribui. Miller não apresenta o movimento sindical como um exemplo brilhante da busca da melhor das justiças sociais; é evidente que representou sobretudo uma camada — a dos trabalhadores com emprego seguro — e esteve muitas vezes empenhado em manter velhas escalas de rendimentos entre diferentes categorias de trabalhadores em circunstâncias em que já tinham perdido a sua justificação. Todavia, a presença de um movimento sindical organizado capaz de mobilizar milhões de pessoas comuns marcou decisivamente a natureza política de toda a sociedade e tornou muito mais fácil a persecução de uma política de justiça social.
Ao mesmo tempo, o advento do multiculturalismo tornou-a mais difícil. Por multiculturalismo Miller não se refere apenas à existência de uma pluralidade de grupos culturais no seio das democracias liberais, mas sim à exigência, por parte dos grupos minoritários, de que o estatuto das suas culturas seja igual ao da maioria. Em termos concretos, requer isto medidas como mudar o conteúdo da educação, dar tempos de antena de televisão e rádio às línguas e culturas das minorias, dar estatuto igual às diferentes religiões, alterar as rotinas laborais para as adequar às minorias culturais, e assim sucessivamente. O problema posto por estas reivindicações é, em parte, o de contribuírem para desviar a atenção das questões de distribuição material, mas, e sobretudo, de talvez poderem ser socialmente divisionistas. Põem grupo contra grupo em concorrência pelos recursos culturais.