Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções
Capítulo VII
A teoria da igualdade segundo Ronald Dworkin – Segunda Parte
Em sua obra “A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade”, Ronald Dworkin trata de duas teorias da igualdade distributiva. A primeira ele denomina “igualdade de bem-estar”, a qual afirma que o esquema distributivo trata as pessoas como iguais quando distribui ou transfere recursos entre elas até que nenhuma transferência adicional possa deixá-las mais iguais em bem estar. A segunda (igualdade de recursos) afirma que as trata como iguais quando distribui ou transfere de modo que nenhuma transferência adicional possa deixar mais iguais suas parcelas do total de recursos.
Dworkin entende que, se quisermos tratar as pessoas genuinamente como iguais (ou assim possa parecer), devemos nos empenhar em tornar suas vidas igualmente desejáveis para elas ou lhes oferecer meios para fazê-lo, e não apenas igualar seus saldos bancários.
Quando surge uma questão de como distribuir riquezas entre filhos, por exemplo, parece que os portadores de deficiências físicas ou mentais têm, com toda justiça, direito a uma parcela maior que os outros. O ideal da igualdade de bem-estar pode parecer a explicação plausível para isso. Por serem deficientes, os cegos precisam de mais recursos para alcançar a igualdade no bem-estar. Mas o mesmo exemplo doméstico também oferece pelo menos um problema difícil para esse ideal, pois a maioria das pessoas resistira à conclusão de que os que têm preferências mais dispendiosas fazem jus, por esse motivo, a uma fatia maior que as dos outros. Quem gosta de champanhe (segundo a nossa descrição de uma situação) também precisa de mais recursos para alcançar o mesmo bem-estar dos que bebem cerveja. Todavia, não parece justo que deva ter mais recursos por esse motivo. O caso do aspirante à política, que precisa de muito dinheiro para realizar seu anseio de fazer o bem, ou do escultor ambicioso, que precisa de material mais caro do que o poeta, talvez esteja em uma posição intermediária. Seu motivo para receber uma parcela maior dos recursos do pai parece mais forte do que o do filho que tem preferências dispendiosas, porém mais fraco do que o do filho cego.
Poderíamos admitir que, em princípio, os recursos sociais devem ser distribuídos de modo que as pessoas se igualem o máximo possível em bem-estar, mas garantir, à guisa de exceção, que não se considere nenhuma diferença em bem-estar atribuíveis a certas fontes, tais como diferenças em preferências por bebidas. Isso proporciona à igualdade de bem-estar o lugar predominante, porém expurga do ideal certas consequências claras e pouco atraentes. Ou poderíamos, no outro extremo, admitir somente que as diferenças no bem-estar oriundas de fontes específicas, tais como deficiências, fossem reduzidas ao mínimo. Nesse caso, a igualdade de bem-estar só teria um papel – talvez bem pequeno – em qualquer teoria geral da igualdade, cuja principal força política deveria provir, então, de direção bem distinta.
Qualquer teoria que adote a igualdade de bem-estar deve dar atenção ao bem-estar das pessoas como um todo, e não ao bem-estar oriundo ou perdido de uma determinada fonte. É evidente que esse tipo de objeção é bem profundo, embora o grau da objeção deva depender da forma do meio-termo proposto. O próprio conceito de bem-estar, mesmo sem distinções quanto à fonte, vago demais ou pouco prático para proporcionara base de qualquer teoria da igualdade.
Há muitas interpretações ou conceitos de bem-estar, e que uma teoria da igualdade de bem-estar que utilize uma dessas interpretações terá consequências bem diferentes, e requererá um diferente amparo teórico, de uma teoria que utilize outra, Alguns filósofos encaram o bem-estar como uma questão de prazer ou satisfação, ou algum outro estado consciente, por exemplo, ao passo que outros o veem como êxito na realização de planos. Cada um dos conceitos conhecidos de bem-estar dá origem a óbvios problemas conceituais e práticos com relação ao teste e à comparação dos níveis de bem-estar de cada pessoa. Cada um deles tem como consequência que as comparações de bem-estar serão sempre indeterminadas; sempre acontecerá que entre duas pessoas nenhuma delas terá menos bem-estar, embora seu bem-estar não seja igual.
Para Dworkin, o fato de haver várias teorias sobre o que é bem-estar e, por isso, várias concepções de igualdade de bem-estar, ele dividiu o que ele considera as teorias mais importantes e plausíveis em dois grupos principais se, contudo, supor que todas as teorias encontradas na literatura se encaixem bem em uma ou outra.
O primeiro grupo ele chama de “teorias bem-sucedidas do bem-estar”. Estas presumem que o bem-estar individual é uma questão de êxito e satisfação de preferências, na realização de metas e aspirações e, assim, a igualdade de êxito, como conceito de igualdade de bem-estar, recomenda a distribuição e a transferência adicional possa reduzir as diferenças entre os êxitos das pessoas. Porém, como as pessoas têm tipos diferentes de preferências, a princípio, estão disponíveis diversas versões de igualdade de êxito.
Em primeiro lugar, segundo Dworkin, as pessoas têm o que ele chama de “preferências políticas”, embora empregue este termo de maneira mais estreita e mais ampla do que normalmente se emprega. Fala de preferências com relação a como deve ser feita a distribuição dos bens dos recursos e das oportunidades da comunidade. Essas preferências podem ser teorias políticas formais de tipo conhecido, como a teoria de que se deve distribuir os bens segundo os méritos ou deméritos, ou preferências mais informais que não são teorias, como a preferência que muitas pessoas têm de que aqueles de quem gostam ou por quem sentem especial empatia devem ter mais que os outros. Em segundo lugar, as pessoas têm o que ele chama de “preferências impessoais”, que são preferências com relação a coisas que não lhes pertencem ou à vida ou a situações de outras pessoas. Algumas pessoas prezam muito o progresso dos conhecimentos científicos, por exemplo, embora não sejam elas (ou qualquer pessoa que conheçam) que realizarão tal progresso, enquanto outras têm igual estima pela conservação de certos tipos de beleza que jamais verão. Em terceiro lugar, as pessoas têm o que ele chama de “preferências pessoais”, que são preferências com relação a suas próprias vivências ou situações.
Dworkin analisou o que ele considera a forma mais irrestrita de igualdade de êxito, afirmando que a redistribuição deve prosseguir, tão longe quanto possível, até que as pessoas sejam iguais em um grau em que sejam satisfeitas suas diversas preferências. Tal versão é a de que só se deve considerar as preferências não políticas nesse cálculo e, depois, a versão ainda mais restrita de que só se deve contemplar as preferências pessoais. Nesse sentido, ele chama de “teorias de estado de consciência” a segunda classe de teorias de bem-estar. A igualdade de bem-estar vinculada a esse tipo de teoria afirma que a distribuição deve tentar deixar as pessoas no nível máximo possível de igualdade em algum aspecto ou qualidade de sua vida consciente.
Dworkin usa as palavras “satisfação” e “insatisfação” de maneira indiscriminada para dar nome a toda a escala de estados de consciência ou emoções, desejáveis ou não, que qualquer versão da concepção de igualdade de bem-estar baseada no estado de consciência possa presumir importante.
As pessoas quase sempre sentem satisfação ou insatisfação diretamente, graças a estímulos sensitivos por intermédio de sexo, alimentos, calor, frio ou metal. Mas também sentem satisfação ou insatisfação por meio de realização ou da frustração de suas preferências de diversos tipos. Portanto, há versões irrestritas e restritas da concepção de igualdade de bem-estar pelo estado de consciência, paralelas às versões que Dworkin assinalou de igualdade de êxito. Uma dessas versões visa tornar as pessoas mais iguais em satisfação sem restrições quanto à fonte; outra somente na satisfação que experimentam diretamente ou de preferências não políticas; e outra, na satisfação que sentem diretamente e oriunda apenas de preferências pessoais. Assim como no caso da igualdade de êxito, também há versões mais diferenciadas que combinam a satisfação proveniente de subdivisões desses tipos distintos de preferências.
Cabe ressaltar que Dworkin também analisa, embora de maneira reduzida, uma terceira classe de concepções de igualdade de bem-estar, que ele chama de “concepções objetivas”.
Dworkin questiona: alguém alcança dado nível de êxito, para fins de igualdade de êxito, quando acredita que suas preferências foram satisfeitas até dado grau, ou quando acreditaria nisso se conhecesse os fatos? As preferências individuais mudam, segundo ele, por exemplo, e a questão de até que ponto as preferências que uma pessoa elegeu para sua vida foram satisfeitas em geral dependerá de qual conjunto de preferências ela possui em ocasiões diversas. E questiona ainda: (1) O bem-estar total de alguém – seu bem-estar essencial – é, realmente, apenas questão do grau de êxito ao realizar suas preferências (ou apenas questão de satisfação)? (2) A igualdade distributiva realmente requer que se aspire a igualar as pessoas nesse êxito (ou satisfação)? A primeira dessas questões encara de certa forma a ligação entre as teorias de bem-estar, como as que ele descreveu, e o conceito de bem-estar propriamente dito. Supõe que essa ligação é bem semelhante à ligação entre as teorias ou concepções de justiça e o seu próprio conceito.
Podemos crer que a igualdade genuína requer que as pessoas sejam igualadas no êxito (ou na satisfação) sem acreditar que o bem-estar essencial, devidamente entendido, seja apenas uma questão de êxito (ou satisfação). Podemos, de fato, acreditar que a igualdade requer igualdade no êxito, mesmo que sejamos céticos com relação a toda ideia de bem-estar essencial, considerado um fato profundo ou adicional relativo às pessoas e conceitualmente independente de seu êxito ou de sua satisfação. Isto é, podemos aceitar a igualdade de êxito como ideal político atraente, mesmo rejeitando o próprio sentido da questão acerca de serem duas pessoas iguais em êxito também iguais em bem-estar essencial. E podemos fazê-lo até se negarmos que essa questão é análoga à questão de se produzir a máxima utilidade média possível torna justa uma instituição.