CANTO II
Repugnante o ranço e a ação apócrifa
emergentes das veias carrascais,
espicaçando a vítima do enredo
no trâmite da iníqua decisão.
A pompa e o desperdício afrontadores,
ridículo exsudar da vil riqueza,
é a fútil e desprezível violação
da infeliz condição do ser humano.
O cérebro motriz das arrogâncias
é fonte inesgotável das inciências,
forjadas nos resíduos ancestrais
trazidos de memórias desvairadas.
Ao som tosco da azenha nas usinas,
ao crepitar do fogo nas carvoeiras,
na quebração de pedra nos rochedos,
na colheita das palmas do sisal;
também nas fabriquetas clandestinas,
nos seringais, nas granjas, nas estâncias,
nos carnaubais, as folhas assassinas,
no comércio informal das avenidas,
na exploração hedionda e criminosa
do corpo das meninas miseráveis,
enfim, onde não ronca o açoite cruento?
Onde não ruge a nota da chibata?
Quantos meninos, quantos, espalhados
na imensidão dos campos, das montanhas,
dos litorais pesqueiros e das ruas,
rompendo o dia, a noite e a madrugada
ao molde escravocrata das senzalas,
ao som do canto triste das labutas!
Sim. É canto repetido aos quatro ventos,
pois se conscrevem crianças como escravas
no sisal, na olaria, na pedreira,
no trabalho brutal da carvoaria,
da salina, do rude canavial!
Gritos inúteis! Ah, gritos inúteis!
Quais trapos vivos que outros trapos repudiam,
olhos profundos pela insônia repetida,
seguem no atroz revezamento da vigília,
buscando ao longe a luz de novas esperanças.
Se o desditoso infante bóia fria
lacera-se na lida desumana,
ao rigor da omissão empresarial,
retornemos à história dos senhores
que nos corpos escravos perpetravam
as chagas lancinantes do chicote
em nome da ganância abominável.
Enorme é a sociedade cobiçosa
que espraia o germe inútil do desdém,
fingindo não saber que o desditoso
escava a própria cova passo a passo,
vencido pela fome, um és-não-és
chafurdado em nojosas podridões.
Desabrocham gemidos lamentosos
das taperas, calçadas, palafitas;
sob escadas, viadutos e marquises;
nas ruas, nas favelas e nos campos.
É a dor da mãe plangente em prostração
vendo o filho sofrendo ao deus-dará.