Um olhar antropológico sobre a revolta do Islã

Na zona equatorial, a amplitude das marés é muito grande. Entre a maré baixa e a maré alta, a diferença pode alcançar de 8 a 10 metros de altura. Assim, na cheia, o mar pode chegar a pontos muito distantes da costa, lambendo extensões imensas de terra.
Recorrendo a esta imagem, podemos dizer que as civilizações sobem e descem como as marés. A civilização ocidental, que começou a se formar após a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), também teve cheias e vazantes. A primeira cheia pode ser localizada no Império de Carlos Magno (768-814). Pode-se considerar as Cruzadas (1096 a 1270) como a segunda, e a expansão dos escandinavos a terceira (entre os séculos VIII e XI).
Porém, nenhuma cheia de maré da Civilização Ocidental alcançou altura tão grande quanto à expansão marítima que começou no século XV, alimentada pelo capitalismo comercial. Esta cheia alcançou todo o planeta e atingiu todas as culturas da Terra, mas de forma diferenciada. Ao refluir a maré alta, a marca do ocidente não se apagou. A mancha formou elites ocidentalizadas, numa extremidade, e noutra, organizações contrárias à dominação ocidental. No meio, a maré atingiu a maioria das pessoas de maneiras distintas.
Em termos antropológicos, estamos falando do processo de aculturação. O choque do ocidente com as culturas da América pré-colombiana, já no século XVI, ilustra o processo de formação de lideranças ocidentalizadas e de grupos de resistência. O inca Garcilaso de La Vega estudou na Europa e se tornou um ardoroso anti-europeu. Guaman Poma de Ayala, outro nativo, serviu no exército espanhol de dominação, mas não conseguiu pensar como europeu. O movimento Taqui Ongoy (1560-1572) esforçou-se por restaurar a cultura andina, num processo de contra-aculturação.
Particularmente na civilização islâmica, a dominação colonial do ocidente criou lideranças ocidentalizadas, lideranças resistentes e um grande grupo de pessoas que combinaram inconscientemente valores tradicionais e valores ocidentais, num típico caso de dualismo cultural. Há dois tipos de líderes muçulmanos. O primeiro reúne as lideranças autoritárias e ditatoriais, como Saddan Houssein, Bashar al-Assad, Hosni Mubarak e Zine el-Abidine Ben Ali, que permaneceram no poder enquanto contaram com o apoio do ocidente, sobretudo dos Estados Unidos, pois serviam a seus interesses.
O segundo tipo é representado por governantes aparentemente liberais e democráticos, como Mohamed Morsi, Moncef Marzouki e Mohamed al-Magarief. Eles chegaram ao poder com a Primavera Árabe e também apoiam o ocidente, contando com o apoio dele. Na outra extremidade, estão as organizações fundamentalistas, que desejam não só a expulsão dos ocidentais como também das marcas do ocidente, como a Al Qaeda, o Talebã, o regime iraniano dos Aiatolás e a Hezbollah. No meio, a maioria do povo dos vários países se ocidentalizou por fora, mas continua tradicional por dentro. Entre ela, há descontentamentos com as lideranças ocidentalizadas e com o ocidente, bem como com as organizações fundamentalistas.
Então, entra em cartaz o filme "A inocência dos muçulmanos", produzido nos Estados Unidos com o único objetivo é denegrir a imagem de Maomé. Divulgado na internet, ele funcionou como um rastilho de pólvora, provocando manifestações de protesto em 19 países islâmicos. Não tem cabimento afirmar que a revolta vem a ser um movimento orquestrado contra o ocidente. O que se pode observar, do ponto de vista antropológico, é o aproveitamento do movimento pelas organizações fundamentalistas e o esforço das elites ocidentalizadas em debelá-lo.
É claro que ele seria aproveitado pelos dois lados organizados, tanto para açulá-lo quanto para debelá-lo. É claro que problemas antigos voltam à tona, como a questão palestina. É claro que os movimentos interferem nas eleições presidenciais norte-americanas, levando os dois candidatos a fazerem pronunciamentos superficiais. O problema é de fundo e espontâneo. Nenhum líder mundial pode contê-lo. Nenhuma organização conseguirá aparelhá-lo de todo. O filme não é o grande responsável pelas rebeliões, mas foi o motivo imediato para a explosão de descontentamento. Notem que a crise econômica europeia levou os catalães a reivindicarem novamente a independência. Notem que os ressentimentos da China contra o J apão por causa das duas guerras sino-japonesas reacendem-se com a compra das Ilhas Senkaku ou Diayou pelo Japão. A cultura e o passado são mais fundos do que possamos imaginar. Os analistas precisam conhecer antropologia e história para não esperar um comportamento ocidental de todos os povos.

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 30 de setembro de 2012

publicidade
publicidade
Crochelandia

Blogs dos Colunistas

-
Ana
Kaye
Rio de Janeiro
-
Andrei
Bastos
Rio de Janeiro - RJ
-
Carolina
Faria
São Paulo - SP
-
Celso
Lungaretti
São Paulo - SP
-
Cristiane
Visentin

Nova Iorque - USA
-
Daniele
Rodrigues

Macaé - RJ
-
Denise
Dalmacchio
Vila Velha - ES
-
Doroty
Dimolitsas
Sena Madureira - AC
-
Eduardo
Ritter

Porto Alegre - RS
.
Elisio
Peixoto

São Caetano do Sul - SP
.
Francisco
Castro

Barueri - SP
.
Jaqueline
Serávia

Rio das Ostras - RJ
.
Jorge
Hori
São Paulo - SP
.
Jorge
Hessen
Brasília - DF
.
José
Milbs
Macaé - RJ
.
Lourdes
Limeira

João Pessoa - PB
.
Luiz Zatar
Tabajara

Niterói - RJ
.
Marcelo
Sguassabia

Campinas - SP
.
Marta
Peres

Minas Gerais
.
Miriam
Zelikowski

São Paulo - SP
.
Monica
Braga

Macaé - RJ
roney
Roney
Moraes

Cachoeiro - ES
roney
Sandra
Almeida

Cacoal - RO
roney
Soninha
Porto

Cruz Alta - RS