O soldado persa

(Esboço de conto)

Vêem esse crânio inteiriço formado de ossos alvíssimos, nas mãos de um arqueólogo? É meu. Ou foi meu. Embora o deserto tenha devorado minha carne, meu espírito é quase onipresente. Esse crânio, hoje descarnado, era revestido por um grosso couro cabeludo e cabelos compridos. Ainda que novo, a pele do meu rosto já era sulcada por rugas adquiridas nos campos de batalha, sob sol causticante, sob vento seco, sob chuva inclemente. Ele era coberto por uma barba pontiaguda.

Fui um soldado persa no reinado de Kambujiya ou, em persa, کمبوجیه, descendente de Ciro, fundador da dinastia aquêmenida. Mais tarde, ele recebeu o nome de Cambises II. Sei que os livros de história de hoje dizem que Ciro foi piedoso e magnânimo, enquanto Cambises foi conquistador e cruel. Ciro não foi tão generoso quanto dizem e Cambises não foi mais agressivo que alguns líderes dos países atuais. Um unificou a Pérsia. Outro criou um império. Era comum, no nosso tempo, eliminar os concorrentes, sem qualquer respeito ao que vocês hoje chamam de direitos do homem ou amor familiar. Cambises assassinou seu irmão Esmérdis após a vitoriosa batalha de Pelesium.

Meu rei era inteligente e ambicioso. Formou um grande império no que vocês hoje chamam de Oriente Médio. Ele conquistou países e fez muitos aliados para enfrentar o faraó Psamético III em 525 antes de Cristo, o deus dos ocidentais, cujo nascimento é tomado como marco zero da história. O exército egípcio foi massacrado. Os sobreviventes refugiaram-se na fortaleza de Pelesium. Meu rei, num golpe de mestre, soltou uma legião de gatos, animal sagrado para os egípcios, e assim conquistou esse império. Ctésias registrou cerca de cinquenta mil mortos. Do lado persa, apenas sete mil. Oitenta anos depois, Heródoto escreveu que o campo de batalha ainda estava eivado de crânios atingidos. O Egito se transformou numa satrápia.

Mas Cambises queria mais. Ele pretendia conquistar a Etiópia, passando pela Núbia, ao norte do Egito, e subjugar os habitantes do oásis de Siwa, no deserto do Saara, onde havia um famoso oráculo, mais tarde visitado por Alexandre Magno. Se possível, incorporar Cartago a seu império. Cerca de cinquenta mil homens foram enviados para lá. Eu estava entre eles. No entanto, as tropas, a cavalo e a camelo, jamais chegaram ao destino. O sumiço de tantos soldados se transformou num mistério.

Meu espírito pode esclarecer o aconteceu. Fomos colhidos por uma tempestade de qibli, um vento quente que vem do sul do Saara, e tragados pelas areias do deserto. Muitas outras expedições foram engolidas por este vento mortal. Já soterrado, meu espírito soube que Cambises foi derrotado na Núbia e que morreu na Síria, quando retornava para a Pérsia. Nós ficamos aqui sepultados sob areias escaldantes.

Nossa tropa se tornou lendária. Em 1935, o explorador Laszlo de Almásy alistou-se no Afrika Korps, tropas nazistas em território africano. Sua intenção não era servir ao Cambises alemão chamado Hitler, e sim encontrar nossa expedição militar. Mais tarde, será dedicado a ele o filme O Paciente Inglês. Perto de nos achar, seu grupo foi colhido por um qibli que se estendeu por nove dias. A expedição escapou por pouco.

Presentemente, os gêmeos Angelo e Alfredo Castiglioni organizaram uma equipe de pesquisa para tentar nos localizar. Um dos arqueólogos achou meu crânio e o ergue em suas mãos para uma foto. Ali Barakat, Zahi Hawass e Theodor Monod, especialistas em geologia e arqueologia desconfiam que os irmãos sejam charlatães. Para eles, o relato de Heródoto sobre nossa tropa não merece muita confiança.

Permaneci soterrado nas areias escaldantes do Saara por 2.534 anos. Conheço bem a região e meu espírito quase onisciente sabe tudo do passado e do presente. Não consigo prever o futuro distante, mas sei que um novo qibli se aproxima com mais furor do que aquele que nos sepultou. A expedição dos Castiglioni dificilmente escapará de sua fúria. Serão todos tragados pela areia. Meu crânio, que viu a luz do sol depois de tanto tempo, voltará a ser soterrado. Talvez, daqui a cinquenta anos, eu seja visto novamente numa foto.

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