Quatro cenários para Três Vendas

Não importa o nome do lugar. O que importa, por enquanto, é a situação. Imaginemos um rio que atravessa um terreno com áreas planas e com colinas, havendo, em suas margens, lagoas que dependem das oscilações do nível d’água. Nas cheias, as águas do rio transbordam e ocupam as partes planas, que chamamos de várzeas, e as lagoas marginais. Essas várzeas funcionam como áreas de escape. Ao se alastrarem pelas planuras, elas reduzem o ímpeto das cheias acima e abaixo do rio. Na estiagem, o nível do rio abaixa e as águas acumuladas nas várzeas descem lentamente.

Coloquemos, agora, nesta paisagem, uma ferrovia ou uma rodovia que acompanha a margem do rio sem passagem para a água de cheia ou com sistemas subdimensionados de circulação hídrica. Quando o rio encher, as águas transbordantes serão barradas pela estrada ou alcançarão o outro lado da via, por manilhas ou pontilhões, com dificuldade. Assim, a água do rio será obrigada a correr em seu leito torrencialmente. Há, ainda, duas outras alternativas: a água ultrapassa a estrada ou sua força a arrebenta, buscando seu leito de cheia original.

Acrescentemos uma lavoura de cana como um novo elemento nas várzeas. Ela se desenvolve bem nos solos fertilizados pelo rio no período da estiagem, mas, nas cheias, as águas inundam as margens e afogam o canavial até a estrada. Se estas ultrapassarem a via ou a romperem, o canavial será afogado também na parte aparentemente protegida pela estrada-dique. Para tentar impedir o avanço das águas, será preciso construir diques nas margens do rio. Contudo, estes também podem ser ultrapassados ou rompidos pelas águas de cheia.

O último elemento a entrar em cena é um povoado na várzea, situado, em tese, no lado protegido pela estrada. Ele começa com poucas casas e vai crescendo, inclusive com apoio do poder público ou mesmo pela iniciativa direta dele. Em artigo recente, o Deputado Federal Fernando Gabeira intitulou de "nova fisionomia do humanismo" - de direita ou de esquerda - a permissão de construir ou a construção de casas para pessoas de baixa renda em áreas de risco. Quando chega a estação das chuvas, os transbordamentos podem ficar retidos nos limites dos diques marginais, mas podem também ultrapassá-los ou rompê-los e atingir a estrada. Podem ser contidos por esta ou ultrapassá-la ou, ainda, rompê-la.

Dando nome aos bois, agora, o rio é o Muriaé, último afluente do Rio Paraíba do Sul. O terreno cortado por ele são as barreiras, com várzeas e colinas. As principais lagoas associadas ao rio são as da Onça, do Coqueiro, do Lameiro, da Boa Vista (ou do Maranhão) e Limpa. Já entrando no Rio Paraíba do Sul, encontramos, na mesma situação, as Lagoas do Jacu, do Cantagalo e das Pedras. As da Onça e da Boa Vista foram totalmente drenadas para o cultivo de cana. A do Cantagalo também foi seca e está sendo ocupada por pessoas de baixa renda com o beneplácito da prefeitura. Em resumo, as lagoas deixaram de ajudar a absorver água das cheias por terem sido bloqueadas para interesse da cana.

A primeira estrada foi a ferrovia Carangola, hoje desativada e substituída pela rodovia BR-356, uma verdadeira enciclopédia de erros ambientais, como, de resto, acontece com todas as rodovias brasileiras. Os canaviais, em grande parte, são implantados nas várzeas. Se o rio destruir os diques em suas margens, os prejuízos são grandes. Se ultrapassar ou romper a estrada BR-356, maiores ainda.

O povoado chama-se Três Vendas, que começou com algumas casas e hoje tem cerca de quinhentas, numa sensível área e risco. Se o processo natural (será que, com o aquecimento global, podemos considerá-lo natural?) agir de maneira extrema, acontecerá a seguinte sucessão: chuvas abundantes em toda a bacia ou em grande parte dela correrão para os rios e se concentrarão no rio principal, no caso, o Muriaé. As águas impetuosas destruirão os diques e se alastrarão nas várzeas, afogando os canaviais, até colidirem com a estrada, que primeiro será ultrapassada e depois destruída em um ou mais pontos. Indo adiante, elas podem alagar as lagoas barradas ainda com água ou totalmente drenadas.

Assim, o rio, contra tudo e contra todos, ocupa o seu leito maior original. Como a maioria das pessoas não tem este conhecimento histórico, entende que o rio está invadindo o que não lhe pertence, quando, na verdade, a invasão foi perpetrada pela arrogância humana de ricos e pobres com estradas, canaviais, diques, comportas e núcleos urbanos.

Com as chuvas de dezembro de 2008, o evento de cheia não chegou ao nível extremo. As águas romperam o dique e rumaram para a BR-356, que foi ultrapassada por elas e atingiram Três Vendas. Represadas pela rodovia, com um sistema insuficiente e abandonado de drenagem, as águas alagaram a localidade e desabrigaram e desalojaram sua população. Em caráter emergencial, entendeu acertadamente o Promotor de Justiça Marcelo Lessa, com aval do Departamento Nacional de Infra-estrutura, que a solução era romper a estrada a fim de que as águas represadas e poluídas voltassem ao rio. Em caráter permanente, contudo, devemos pensar em quatro cenários, a serem analisados no próximo texto, que o leitor poderá usar para refletir junto com este articulista. 

Complexus

O primeiro cenário para a localidade de Três Vendas, em Campos, e, por extensão, para a sede municipal de Cardoso Moreira, ambas às margens do Rio Muriaé, consiste em promover o retorno ao quadro original, ou seja, retirar a rodovia BR-356, os canaviais, o gado e os dois núcleos urbanos. Sairia dali também a Usina e o povoado de Sapucaia. Seriam retirados os diques junto ao rio e às comportas ou barragens nas Lagoas da Onça, do Lameiro, do Maranhão e Limpa. As águas de cheias poderiam, então, espraiar-se por grandes extensões de depressões, reduzindo sensivelmente os efeitos das enchentes acima e abaixo dos pontos hoje afetados. Percebe-se logo a impossibilidade de viabilizar este cenário depois de tantas intervenções humanas nele.

O segundo cenário comportaria apenas a estrada BR-356. Para tanto, porém, seria necessário elevar seu leito nos pontos em que ela acompanha as depressões. Estes são os pontos mais vulneráveis, por onde as águas de cheia ou transpassam o asfalto ou abrem brechas na rodovia para alcançar suas naturais áreas de alagamento: várzeas e lagoas. A ferrovia Carangola, hoje desativada, foi construída de forma bem mais inteligente, com leito nivelado mais alto que a rodovia e com passagens para as águas.

O terceiro cenário deixaria a estrada devidamente adaptada ao ambiente, mas retiraria a cana e os pastos. Nas várzeas, seriam cultivadas lavouras de ciclo curto na estação da estiagem, utilizando-se, para irrigação, as águas do rio e das lagoas. O capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis, ao subir o Rio Muriaé, por volta de 1784, encantou-se com suas extensas várzeas marginais. Em torno de 1827, o naturalista amador sergipano Antonio Muniz de Souza experimentou o mesmo sentimento. Cumpre observar, contudo, que ambos subiram o rio de embarcação até o ponto em que seria erguida Cardoso Moreira, em tempo de seca. Não lhes foi permitido perceber a função das várzeas em época de chuva. O próprio Couto Reis não conseguiu subir o Rio Pomba, que estava cheio por conta das chuvas, como ele registrou.

Finalmente, coloque-se, neste cenário o povoado de Três Vendas e a cidade de Cardoso Moreira. Pode-se esperar que, no caso do primeiro, construído atrás da rodovia BR-356 e dos diques erguidos pela usina Sapucaia, às margens do Rio Muriaé, estas duas barragens protejam o núcleo populacional. No entanto, se as águas de cheia ultrapassarem ou destruírem o dique e a estrada, Três Vendas ficará embaixo d’água, pois cresceu numa dilatada várzea de alagamento do rio. Caso a água apenas transponha a estrada, esta impedirá o escoamento dela de volta para o rio, quando este baixar. Cardoso Moreira está em situação pior. A maior parte da cidade fica na margem esquerda do rio, sem sequer a frágil proteção da estrada. Cerca de 80% de sua área situam-se no leito de cheia do Muriaé. Lembremos ainda da pequena localidade de Sapucaia, nas cercanias da usina de mesmo nome. Ela está encravada entre o dique construído na margem esquerda do Rio Muriaé e a rodovia BR-356. Se o dique arrebentar, as águas avançarão sobre ela como um maremoto.

O cenário ideal para a grande várzea em que se localiza Três Vendas é, a nosso ver, uma combinação dos quatro. Lamento dizer para os moradores do povoado e para a prefeitura de Campos que a única saída para Três Vendas é sair. No próximo período de estiagem, o poder público municipal deve se empenhar na construção de um conjunto habitacional em área elevada próxima ao atual povoado e demolir as casas construídas na várzea. Evidente que o novo povoado deverá contar com captação, estação de tratamento e rede de distribuição de água a partir do rio Muriaé. Deverá contar também com rede de coleta e estação de tratamento de esgoto, além de galerias de águas pluviais.

A cidade de Cardoso Moreira também deve ser transferida, progressivamente, para as áreas altas no entorno do atual núcleo urbano. Algumas pessoas, por conta própria, já aprenderam que é inútil desafiar o rio. A mesma solução deve ser adotada para Sapucaia.

Quanto à rodovia BR-356, deve ela ser nivelada em cota alta, pelo menos na área de várzeas, com sistemas adequados para a circulação de águas, abrindo-se, igualmente, as Lagoas da Onça, do Lameiro, da Boa Vista e Limpa, a fim de que cumpram sua função de reservatórios. Cana e gado não são atividades corretas para as baixadas.

Com estas medidas, tudo estará resolvido? Claro que não. Contudo, o impacto das cheias será bastante atenuado.

Em artigo jornalístico, o deputado federal Fernando Gabeira defende a precaução e a prevenção como medidas primeiras. Mas adverte que os "humanistas" de direita e esquerda começam a entender precaução e prevenção como as novas palavras de ordem dos ecochatos.
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