A Promiscuidade de Nossos Avós

Recentemente, pesquisadores do grupo de Eric Lander, do Instituto Broad da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, de Cambridge, publicaram um artigo na conceituada revista Nature, levantando a hipótese de intensos cruzamentos entre ancestrais dos Homo sapiens sapiens e do chimpanzé, com resultados possivelmente férteis.

Segundo eles, "uma análise detalhada do genoma das duas espécies indica que a separação definitiva entre suas linhagens ocorreu 1 milhão de anos mais tarde do que se imaginava." Não se trata de fantasia. Os pesquisadores acreditam que variedades do ancestral comum aos hominídeos e ao chimpanzé conviveram e se acasalaram cerca de 4 milhões de anos antes que os dois grupos seguissem seus próprios caminhos, através do processo de especiação, entre 6,3 milhões e 5,4 milhões de anos antes do presente.

A hipótese bem embasada no genoma das duas espécies atualmente esbarra em problemas vindos da zoologia e dos métodos de datação, já que os mais antigos hominídeos ancestrais do Homo sapiens sapiens remontam a um período entre 6 e 7 milhões de anos, como são os casos do Sahelanthropus tchadensis e do Orrorin tugenensis. Em outras palavras, pelo conhecimento atual, esta promiscuidade entre nossos antepassados não poderia ter ocorrido em grande parte do período demarcado pelos geneticistas. Mas, em ciência, há sempre a possibilidade de revisões.
Entre raças (variedades) de cães, de gatos e de outras espécies, o cruzamento produz prole mestiça e fértil. Já o cruzamento entre espécies diferentes, porém próximas, geram híbridos estéreis, como o burro e a mula, macho e fêmea do cruzamento do jumento (Equus asinus) e da égua (Equus caballus). Aqui, é oportuno mencionar um caso recentemente estudado. Uma equipe de cientistas, examinando a Heliconius heurippa – uma espécie latino-americana de borboleta – suspeitou que ela podia ser o produto do cruzamento de outras duas espécies do seu gênero, a Heliconius cydno e a Heliconius melpomene. Procedendo a uma experiência em laboratório, confirmaram sua suspeita: a H. heurippa é, de fato, uma espécie resultante do acasalamento da H. cydno com a H. melpomene. Espécie e não híbrido, pois um casal de H. heurippa pode ter prole da mesma espécie, distintamente do burro e da mula. A experiência levou a equipe a questionar o evolucionismo, pois, segundo a explicação clássica, uma espécie deriva de outra pela mutação genética e pela seleção natural. A criatividade da natureza, todavia, está a exigir que o evolucionismo seja mais elástico.

Há casos de cruzamentos entre indivíduos de espécies distintas que resultam numa prole que aborta, como ocorre com o fruto do amor entre uma cabra e um carneiro, por exemplo. Por fim, a maioria dos cruzamentos não gera nada, a não ser o prazer sexual. Neste último caso, não sei por que a dificuldade do paleontólogo Dan Lieberman em imaginar um hominídeo e um chimpanzé mantendo relações sexuais. Todos os tipos de relações apontadas existem até hoje. Na minha adolescência, era comum os jovens terem relações sexuais com vacas, éguas, cabras, ovelhas e até com cadelas e galinhas. Na África, não é estranha a relação sexual de humanos com grandes macacos, sendo esta uma promissora explicação para a disseminação do vírus HIV, causador da AIDS.

Se os geneticistas estiverem certos, há de se empurrar o Sahelanthropus, o Orrorin e o Ardipithecus para um período entre 6 e 5 milhões de anos, como especulou Nick Patterson, um dos autores do estudo. Se, por outro lado, o paleoantropólogo David Pilbeam estiver certo em considerar o Sahelanthropus, o Orrorin e o Ardipithecus já na família dos hominídeos, pelo seu bipedalismo (postura ereta sobre dois pés) e por sua morfologia dentária, a promiscuidade de nossos longínquos avós deve ser empurrada para um tempo anterior a 6,5 mil anos, pelo menos. Pilbeam tem bastante razão em duvidar, até segunda ordem, que indivíduos de espécies já situados na ramificação dos chimpanzés tivessem descendentes férteis ao se acasalarem com primatas hominídeos.

Arthur Soffiati
Membro da Sociedade Brasileira de Paleontologia,
Membro Correspondente do Grupo Fossilis
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