1- Nova concepção de sujeito. Até hoje, o paradigma mecanicista continua dando as cartas quanto à interpretação do mundo e às filosofias do sujeito. Embora os enunciados, em grande medida, tenham se calado, suas concepções impregnaram nossas mentes. Ainda ecoa o “penso, logo existo”, de Descartes, ou o “simbolizo, logo existo”, de Cassirer. A biologia complexa, notadamente a etologia, está propondo há tempo o “computo, logo existo”. Computar consiste em recolher as informações do meio e processá-las em proveito do indivíduo vivo e da espécie. Trata-se de uma forma de conhecimento que não se restringe aos organismos que contam com sistema nervoso central e/ou periférico. Ele se estende também às bactérias, aos protozoários, aos fungos e aos vegetais. Neste sentido, a natureza não-humana, ainda vista como objeto de conhecimento pelas ciências humanas, passa a ser também sujeito, ao passo que o ser humano individual ou coletivo transforma-se também em objeto do seu próprio conhecimento.
2- Natureza não viva. E a natureza não viva, continua sendo apenas objeto de estudo? Quem examina a história do Universo, da Via Láctea, do sistema planetário solar e da Terra sabe muito bem que os fenômenos físico-químicos são os principais agentes responsáveis por transformações. Restringindo-nos à Terra, sabemos que o choque de corpos celestes com o planeta, as mudanças de inclinação do eixo terrestre, o vulcanismo, o tectonismo, as mudanças climáticas, as oscilações dos oceanos etc. têm provocado mais transformações na Terra do que a vida e a humanidade. A agricultura, a pecuária, as cidades, as navegações, as revoluções econômicas só puderam acontecer graças a uma estrutura climática com cerca de 10 mil anos de idade que batizamos de Holoceno. Assim, mesmo sem ser provocada, a natureza físico-química tem se comportado como sujeito de transformação, o que a tradição humanista procura desconhecer ou negligenciar.
3- Natureza não-viva como agente revolucionário. A globalização construída pelo mundo ocidental gerou um sistema mundial extremamente complexo. O principal responsável por tal situação é o capitalismo. O desejo de lucrar tornou-se muito poderoso e parece não encontrar limites éticos. De certa forma, o socialismo é fator integrante da globalização. As explicações clássicas parecem não encontrar mais saída para as sucessivas crises do capitalismo. Se acompanharmos o projeto neoliberal, ele está vencendo, mas não em sua forma utópica, que tanto fascinou Michel Foucault no final de sua vida. O neoliberalismo está dando as cartas, mas com o apoio dos estados nacionais, que, teoricamente, ele repudia. Graças a ele, as crises econômicas, social e ambiental se ampliam cada vez mais. A proposta marxista clássica, segundo a qual a classe trabalhadora, na sua práxis, passa de objeto a sujeito de sua história, promovendo uma revolução redentora, fracassou e não tem mais lugar. A versão do marxismo, segundo Gramsci, parece o mito de Tântalo: quanto mais o socialismo, paciente e pacificamente, se aproxima dos aparelhos de Estado para dominá-los por dentro, mais o sonho se afasta, pois os representantes do capitalismo não são tolos. Esperar que os miseráveis do mundo se organizem e, com ajuda de pequenos empresários e de intelectuais comprometidos coma causa revolucionária, promovam a revolução, como concebe Eslavoj Zizek, é sonhar com o impossível. O próprio Zizek lembra que o ímpeto revolucionário dos miseráveis se aquieta com a ida deles para o crime ou para igrejas. Sendo assim, parece que a última esperança reside nas forças da natureza, agora chicoteadas por uma economia-mundo. As estruturas ambientais naturalmente construídas e que permitiram à ciência humana criar o conceito de Holoceno estão sendo bombardeadas pela própria humanidade impregnada pelo capitalismo. O bombardeio está causando mudanças climáticas, acidificação dos oceanos, alterações quantitativas e qualitativas na água doce, aceleração dos ciclos de nitrogênio e fósforo, empobrecimento da biodiversidade, avanço da agropecuária e da urbanização sobre os solos, concentração de poeira na atmosfera etc. Adotando a ideologia do poderoso, daquele que define as estratégias, os dominados criam táticas de sobrevivência que agravam mais ainda a crise ambiental. Aprendiz de feiticeiro, a humanidade está sujeita, agora, a um novo agente revolucionário sem consciência: a natureza não-humana.
Parece que caberá a ela restabelecer o equilíbrio perdido, causando profundos estragos e sofrimento à humanidade. Acontece que a Terra nos ignora completamente. Somos um corpo estranho que deve ser colocado em seu devido lugar.