Machado de Assis começou sua vida de romancista com "Ressurreição", de 1872. Depois, vieram "A mão e a luva" (1874), "Helena" (1876) e "Iaiá Garcia" (1878). Quebrando a regularidade de lançar um romance a cada dois anos, o grande escritor brasileiro lançou, em 1881, o célebre "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O estilo era o mesmo, porém cada vez mais aprimorado. Havia algo de diferente em "Memórias". Ele destoava dos quatro primeiros romances, bem escritos, mas suaves. "Brás Cubas" tem tom pessimista, ácido, irônico. Perguntaram-lhe a razão da mudança. Machado de Assis respondeu que não tinha mais nenhum motivo para acreditar na humanidade. Mesmo assim, o escritor continuou a falar da humanidade até "Memorial de Aires", seu último romance, publicado em 1908.
Descrente da humanidade... Entendo esta postura como ampla demais. Há milhões de anos luz de Machado de Assis, também estou desapontado com a humanidade, mas preciso contextualizar melhor meu desapontamento. A grande humanidade não começou com o "Homo sapiens", a nossa espécie. Os mais antigos hominídeos pouco se distinguiam dos grandes macacos. Se pudéssemos vê-los em movimento hoje, diríamos que deles não poderia nascer uma criatura mais perigosa que os grandes felinos, que as serpentes peçonhentas, que invertebrados venenosos. Até certas espécies vegetais apresentariam mais perigo que os primeiros hominídeos.
Contudo, um traço singular de nossos ancestrais, que recebemos de herança, poderia nos causar temor: a cultura, ou seja, a capacidade de conceber soluções para problemas e materializá-las em objetos. Mesmo assim, perceberíamos que várias espécies de macaco desenvolveram tal capacidade. A cultura não é transmissível por via genética, e sim pela educação. Os hominídeos revelam propensão a adquirir sistemas culturais. O caso da língua ilustra bem esta característica. O ser humano nasce com aptidão orgânica para falar uma ou várias língua(s), mas precisa aprendê-la(s) de alguém ou da sociedade. Caso contrário, a aptidão não se desenvolve. Se criado por animais, aprendem os sons que emitem.
Língua também faz parte da cultura, que cada indivíduo aprende em sociedade. Com uma cultura dominada, um grupo social humano pode fazer inovações. Pode inventar técnicas e tecnologias pacíficas ou destruidoras. Pode tanto escrever um romance do porte de "Dom Casmurro" quanto pode construir uma bomba capaz de exterminar milhares de seres humanos e dizimar milhões de seres vivos, de poluir a atmosfera e a água. Outras espécies de macaco podem fazer o mesmo? Só no livro de ficção "O planeta dos macacos". A capacidade de produzir cultura nos símios é limitada. As guerras entre eles jamais causam os estragos das guerras humanas.
Portanto, não estou decepcionado com os primatas não humanos nem com os primeiros hominídeos. Na verdade, não estou decepcionado com a humanidade. O "Homo sapiens" viveu a maior parte da sua história em sociedades extremamente dependentes da natureza não humana, pois nós mesmos somos expressão da natureza. Durante o longo período paleolítico, as sociedades humanas colhiam, pescavam, caçavam e faziam guerra entre si. Nada, porém, que causasse muitos danos, apesar da bem fundamentada tese levantada por Lawrence H. Keeley, segundo a qual as sociedades que ainda vivem em nível paleolítico atualmente fazem guerra de extermínio. Quem quiser conferir que leia "A guerra antes da civilização - o mito do bom selvagem" (São Paulo: É Realizações, 2011).
Não são as culturas do paleolítico, do neolítico e das diversas civilizações que me desencantam, embora aqueles que as viveram fossem também fizessem parte da espécie autodenominada "Homo sapiens". Mais do que no ser humano, descreio da civilização ocidental nos rumos que tomou a partir do século 15. No contato com outros ambientes naturais e culturais, ela mostrou sua intolerância, sua arrogância, sua capacidade de destruir a natureza e as culturas. O que moveu a civilização ocidental a partir de então foi a procura do lucro. Nessa procura, ela construiu uma civilização insuportável que me parece indestrutível no momento.
"Então - perguntará o leitor -, por que você continua lutando?" Por duas razões: primeiramente, minha descrença pode ser fruto de uma interpretação errada que faço do mundo capitalista globalizado. Em segundo lugar, fatores aleatórios e imprevisíveis atuam na história e podem abrir brechas para mudanças. Enfim, sou um pessimista esperançoso. Mas gostaria de viver no passado.
- Arthur Soffiati
- Arthur Soffiati