Aprendi a apreciar música erudita ouvindo rádio. Mais especificamente a Rádio Ministério da Educação e Cultura. Minha mãe deixava a emissora ligada o dia todo. A música estava lá para quem quisesse. Bastava apenas uma pessoa interessada em ouvi-la. Desde que nasci, minha mãe, uma musicista frustrada em sua carreira artística pelo casamento, estava sintonizada em emissoras de rádio com programação erudita. Contudo, só a partir dos nove anos de idade comecei a gostar da chamada música clássica.
Minha primeira paixão foi “Quadros de uma exposição”, do compositor russo Modest Mussorgski, orquestrada por Maurice Ravel. Aquela música imponente me fez adotar uma atitude de respeito e reverência. Logo em seguida, o próprio Ravel se impôs em meus ouvidos com a suíte de “Daphnis et Chloé”. Em seguida, perdi a noção de quantas composições passei a apreciar.
Hoje, vejo que o rádio tinha uma vantagem sobre os discos. A Radio MEC era AM. Bastava ter um acervo de discos e fitas, um bom programador e um som. Além disso, ouvir rádio era, para mim, um desafio. Eu ouvia, digamos, a quarta sinfonia de Beethoven um dia. Ela seria repetida em outro programa. Porém, eu não sabia quando. Então, toda minha atenção se concentrava na execução da sinfonia, pois, para mim, ela nunca mais seria executada. Assim, aprendi a memorizei composições inteiras em sua melodia e até em sua orquestração. Meu grande prazer era ficar sozinho, com o rádio tocando e eu regendo uma orquestra invisível à minha frente.
Meu avô paterno também gostava de música erudita. Ele foi militar e tocou bombardino nas bandas das unidades em que serviu. Aos domingos, ele sintonizava a Rádio MEC num programa de ópera. Eu lhe fazia companhia, mas não apreciava tanto os sons que saíam do aparelho de rádio. Gosto de música pura ou absoluta. A ópera é uma mistura de música e teatro – até mesmo de dança – que não me agrada. A dança também não. Das óperas e dos bailados, eu gosto apenas da música. Para apreciá-las, eu só preciso do ouvido. Por isso, eu fechava os olhos para melhor fruí-la e regê-las como se estivesse diante da orquestra que a executava.
Não sei por que algumas pessoas manifestam pendor para a música erudita e outras não. Vasculhando as neurociências, não descobri ainda uma explicação. Deixo, então, o mistério no ar. Da minha parte, o período mais rico da minha carreira musical aconteceu na Era do Rádio. Meus pais não tinham um toca-disco. Só quando me tornei adulto emancipado adquiri uma aparelhagem de som para discos de 78 e 33 rotações, além de toca-fita. Passei a adquirir discos de vinil até o advento do CD. Aumentei significativamente minha coleção de discos de vinil quando este começou a ser substituído pelo CD. Guardo meu acervo com cuidado até hoje. Tenho muitos títulos, mas eles não superam a quantidade de títulos que me chegaram pelo rádio.
Ao ingressar na fase do CD, a disponibilidade de títulos reduziu-se mais ainda. Pude adquirir as obras completas de Bach, Beethoven, Brahms e Webern nos Estados Unidos, mas não consigo encontrar músicas de autores que conheci ouvindo a Rádio MEC. Num mundo de facilidades, vasculho as lojas de CDs clássicos e só encontro as mais conhecidas composições dos mais conhecidos autores. Além, é claro, do detestável violinista André Rieu, que presta um tremendo desserviço à musica erudita.
Ouvir rádio apresentava uma grande vantagem sobre o disco: a programação não é feita por mim. Desta forma, eu era obrigado a ficar muito atento. Quando o rádio era meu mundo, eu pensava que seria vantagem ter discos e organizar minha própria programação. Engano. A gente acaba repetindo muito certos autores e certas composições quando tem discos.
Hoje, começo a esquecer das melodias que aprendi pela Rádio MEC ou a não me lembrar mais de seus autores. As músicas tocam na minha mente e eu me descabelo no esforço de recordar de que composição se trata e de quem é seu autor. Sinto saudades da Era do Rádio. Tento voltar a ela, mas encontro tudo mudado. Encontro a abominável tentativa de simplificar composições complexas para conquistar público. Alega-se que é preciso descer ao público leigo para lhe dar a mão e conduzi-lo aos elevados píncaros da música erudita.
Nada contra quem gosta de André Rieu, mas não me venham com a conversa de que é preciso fazer o que Virgílio fez com Dante na “Divina Comédia”: conduzi-lo pela mão até os portais do Paraíso. Raros são os Dantes atualmente. Perdoe-me, Virgílio, mas quero a mão de Beatriz.