Documento de 500 páginas que Lula irá divulgar detalha circunstâncias das mortes dos 339 casos apreciados pela comissão
Relatório pede criação de instância administrativa "para oitiva de policiais e militares" capaz de fornecer dados sobre restos mortais
Pela primeira vez, um documento oficial do governo federal acusa integrantes dos órgãos de repressão da ditadura militar (1964-1985) de decapitar, esquartejar, estuprar, torturar, ocultar cadáveres e executar opositores do regime que já estavam presos e que não podiam reagir. O documento sugere cobrança de explicações das Forças Armadas, algo que ainda não foi decidido.
"A maioria das mortes se deu na prisão, sob intensas torturas", diz o texto produzido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. O livro-relatório se chama "Direito à Memória e à Verdade". Ele registra o que a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, ao longo de 11 anos de trabalho, considera ser a verdade histórica sobre a repressão política.
O documento diz que "os depoimentos colhidos pelas Forças Armadas não foram suficientes para esclarecer onde foram deixados restos mortais dos desaparecidos políticos".
Sugere ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que determine ao Ministério da Defesa e à Secretaria de Direitos Humanos a criação de uma "instância administrativa permanentemente aberta para oitiva de policiais e militares", que possa fornecer dados sobre "localização de restos mortais" e "documentos ou cópias ainda existentes" para elucidar os fatos.
Em outras palavras: o livro desconfia de que há arquivos guardados em segredo e sugere que militares da ativa e da reserva sejam ouvidos.
Lançamento
O lançamento do relatório será nesta quarta-feira, dia seguinte ao aniversário de 28 anos da Lei da Anistia (1979). O secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que teve a idéia de produzir o livro e que assina a obra com o presidente da comissão de mortos e desaparecidos, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, convenceu Lula a realizar uma cerimônia oficial no Palácio do Planalto.
A cúpula do governo prevê que o documento e o evento desagradem a oficiais da ativa e da reserva. Ao contrário de tese difundida pelas Forças Armadas, de que atos cruéis teriam sido cometidos por indivíduos dos porões da ditadura que fugiram ao controle do regime, o livro diz que tais fatos aconteceram a mando da cúpula da ditadura e com o conhecimento de seus mais altos integrantes, inclusive dos generais-presidentes.
As vítimas da ditadura se concentram entre os anos de 1967 e 1974. Foi nesse mesmo período em que guerrilheiros de esquerda combateram o regime militar praticando roubos a bancos, atentados a bomba e outras ações armadas, que também resultaram em mortes.
Governo FHC
A lei de 9.140, editada no governo Fernando Henrique Cardoso, fez pela primeira vez o reconhecimento público de que o Estado assumia a responsabilidade pela morte de opositores da ditadura. Em 1995, Nelson Jobim, hoje ministro da Defesa, era o titular da Justiça.
Agora, o documento da comissão traz as circunstâncias da mortes e desaparecimentos baseando-se em arquivos da Justiça Militar, do Ministério Público e do governo (inclusive das Forças Armadas).
O livro detalha cada um dos 339 casos apreciados pela comissão mais os de 136 nomes já reconhecidos como mortos ou desaparecidos pela lei 9.140 de 1995. Dos 339 pedidos de indenização apresentados à comissão, 221 foram deferidos. Dos 136 nomes listados na lei 9.140, um foi excluído, pois a pessoa morreu de "causas naturais".
As indenizações pagas aos familiares variaram de R$ 100 mil a R$ 152 mil. Das 356 indenizações, uma não foi paga porque familiares não apareceram.
Com tiragem de 5.000 exemplares e 500 páginas, o documento diz que familiares dos mortos e desaparecidos "passaram a ser submetidos a verdadeiras operações de contra-informação e, muitas vezes, foram alvo de chantagem para obtenção de informações que, em nenhum dos casos, se comprovaram verdadeiras".
Segundo o livro, "a violência repressiva não poupou as organizações clandestinas que não tinham aderido à luta armada e nem mesmo religiosos que se opuseram ao regime".
A comissão diz que o termo "desaparecido é usado para definir a condição daquelas pessoas que, apesar de terem sido mortas ou seqüestradas, torturadas e mortas pelos órgãos de segurança, não tiveram suas prisões e mortes assumidas pelas autoridades do Estado". E o termo "morto" é destinado aos casos em que o Estado já reconheceu publicamente a morte. De todos os desaparecidos, só três corpos foram encontrados.