As recentes denúncias de corrupção que atingiram ministros de Estado e partidos políticos evidenciaram mais uma vez a instrumentalização de Organizações Não Governamentais (ONGs) de fachada em esquemas de desvio de recursos públicos. O fato não é novo, está bastante enraizado na natureza do nosso sistema político, sendo de domínio público desde que a chamada CPI dos Anões do Orçamento revelou o esquema fraudulento por meio do qual parlamentares faziam emendas remetendo dinheiro para entidades filantrópicas a eles ligadas.
No entanto, a criatividade dos corruptos e a multiplicação de casos de corrupção envolvendo órgãos públicos federais e estaduais, prefeituras, empresas e ONGs não eximem o Estado e as organizações da sociedade civil das suas responsabilidades no enfrentamento dessas práticas e na eliminação das brechas que propiciam desvios de recursos do contribuinte por meio dos mecanismos de repasse de recursos públicos a organizações da sociedade civil (OSCs).
Esse é o entendimento das organizações da sociedade civil que atuam na área social e desenvolvem parcerias com governos na implementação de políticas públicas, que reagiram às denúncias contra as pseudo-ONGs, exigindo o máximo de rigor na apuração dos fatos. Ao mesmo tempo apoiaram a iniciativa do governo federal de, por meio da Secretaria Geral da Presidência da República, instituir um grupo de trabalho interministerial (com participação paritária de representantes de OSCs) para rever o marco regulatório das entidades sem fins lucrativos.
Essas organizações também criticaram o decreto da presidente da República que suspendeu por 30 dias, de forma indiscriminada, o repasse de recursos de convênios às OSCs, ferindo contratos e criando assim um ambiente de insegurança jurídica. As OSCs protestaram contra os danos morais que tal medida acarretou para milhares de organizações que desenvolvem ações de relevante interesse para a sociedade. Os prejuízos materiais para algumas entidades também não são desprezíveis, como é o caso da Pastoral da Criança, que registrou um déficit de R$ 1.478.282,02, para o qual contribuiu o atraso na liberação das parcelas previstas no convênio com o governo federal. Outro efeito do decreto foi colocar o foco dos questionamentos nas ONGs e não nos políticos beneficiários das práticas ilícitas.
Entretanto, a experiência acumulada pela opinião pública ao lidar no dia a dia com as contradições das instituições políticas nacionais contribuiu para que o debate em curso avançasse na compreensão da complexidade e da verdadeira natureza do problema, ou seja, no reconhecimento de que o fundo da questão reside no caráter sistêmico da corrupção inerente ao atual sistema político. O mais interessante e positivo é a revelação de que essa percepção não é privilégio da sociedade civil.
Exemplo disso foi um recente debate na TV Câmara — no programa Expressão Nacional —, na qual dois deputados federais (um da base do governo, outro da oposição), um ministro do TCU, e um diretor da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) abordaram pontos essenciais da relação entre o Estado brasileiro e as OSCs, a saber: as implicações do presidencialismo de coalizão e o papel dos partidos, o diagnóstico de que “o Estado está frouxo”, a distorção do pacto federativo e a concentração de recursos e de poder na União, a incapacidade do Estado de gerenciar convênios, etc.
Um elemento importante dessa discussão — e que contribui para deslocar a discussão da criminalização das ONGs — é a informação produzida por um estudo da Fiesp, segundo a qual o custo anual da corrupção no país é avaliado entre R$ 45 bilhões e R$ 69 bilhões, enquanto o montante total de convênios com ONGs em 2010 não passou de R$ 3 bilhões. Por outro lado, o ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União, tem deixado claro que o combate à corrupção só será vitorioso na medida em que se ponha fim à impunidade dos corruptos, o que depende no essencial de uma revisão dos procedimentos judiciais.
No tocante à questão específica dos instrumentos e das modalidades de repasse de recursos públicos às OSCs, o que desafia a nossa compreensão é a persistência e a força dos bloqueios à revisão do marco regulatório das entidades sem fins lucrativos, embora tenha sido unânime — no seminário promovido pela Secretaria Geral — o reconhecimento da profunda inadequação da legislação atual e o sentimento de insegurança jurídica por parte das OSCs e de muitos agentes governamentais. Além de não conter nenhuma política de fomento ao setor, seu aspecto mais criticado é a legislação dos convênios, que trata as OSCs impropriamente como municípios e que traz uma concepção de dominação das OSCs pelo Estado.
A Abong defende há anos a revisão dessa caótica legislação e a criação de um marco legal que reconheça a legitimidade e regule de forma transparente o acesso dessas organizações a fundos públicos. Apesar de a revisão do marco regulatório ter sido apresentada ao governo Lula, em 2003, como ponto fundamental da agenda das ONGs, a questão ficou paralisada, talvez pelo ambiente político desfavorável, marcado por duas CPIs hostis às ONGs e ao papel que elas desempenham na radicalização da democracia e na crítica ao atual modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente insustentável.
Essa agenda só agora foi retomada, graças ao compromisso político assumido pela então candidata Dilma Rousseff, e reafirmado como presidente. Não se pode descartar, no entanto, que subsistam no governo resistências ao reconhecimento do papel das organizações da sociedade civil e à definição de um novo marco regulatório.
* Jorge Eduardo S. Durão é assessor da diretoria da Fase.
** Publicado originalmente no jornal Valor Econômico e retirado da Plataforma OSC.
(Plataforma OSC)