Inépcia do Estado na relação com as ONGs

Berni manifestacion 1934 cineciapolitica 4t com 300x216 Inépcia do Estado na relação com as ONGs“As ONGs nasceram como uma coisa espontânea, fora dos partidos. Quando existe uma cooptação das ONGs pelos partidos ou quando os partidos criam uma ONG para obter contratos, isso não é ONG, isso é um braço do partido disfarçado para poder obter um fundo que não é legítimo” (Fernando Henrique Cardoso).
As recentes denúncias de corrupção que atingiram ministros de Estado e partidos políticos evidenciaram mais uma vez a instrumentalização de Organizações Não Governamentais (ONGs) de fachada em esquemas de desvio de recursos públicos. O fato não é novo, está bastante enraizado na natureza do nosso sistema político, sendo de domínio público desde que a chamada CPI dos Anões do Orçamento revelou o esquema fraudulento por meio do qual parlamentares faziam emendas remetendo dinheiro para entidades filantrópicas a eles ligadas.
No entanto, a criatividade dos corruptos e a multiplicação de casos de corrupção envolvendo órgãos públicos federais e estaduais, prefeituras, empresas e ONGs não eximem o Estado e as organizações da sociedade civil das suas responsabilidades no enfrentamento dessas práticas e na eliminação das brechas que propiciam desvios de recursos do contribuinte por meio dos mecanismos de repasse de recursos públicos a organizações da sociedade civil (OSCs).
Esse é o entendimento das organizações da sociedade civil que atuam na área social e desenvolvem parcerias com governos na implementação de políticas públicas, que reagiram às denúncias contra as pseudo-ONGs, exigindo o máximo de rigor na apuração dos fatos. Ao mesmo tempo apoiaram a iniciativa do governo federal de, por meio da Secretaria Geral da Presidência da República, instituir um grupo de trabalho interministerial (com participação paritária de representantes de OSCs) para rever o marco regulatório das entidades sem fins lucrativos.
Essas organizações também criticaram o decreto da presidente da República que suspendeu por 30 dias, de forma indiscriminada, o repasse de recursos de convênios às OSCs, ferindo contratos e criando assim um ambiente de insegurança jurídica. As OSCs protestaram contra os danos morais que tal medida acarretou para milhares de organizações que desenvolvem ações de relevante interesse para a sociedade. Os prejuízos materiais para algumas entidades também não são desprezíveis, como é o caso da Pastoral da Criança, que registrou um déficit de R$ 1.478.282,02, para o qual contribuiu o atraso na liberação das parcelas previstas no convênio com o governo federal. Outro efeito do decreto foi colocar o foco dos questionamentos nas ONGs e não nos políticos beneficiários das práticas ilícitas.
Entretanto, a experiência acumulada pela opinião pública ao lidar no dia a dia com as contradições das instituições políticas nacionais contribuiu para que o debate em curso avançasse na compreensão da complexidade e da verdadeira natureza do problema, ou seja, no reconhecimento de que o fundo da questão reside no caráter sistêmico da corrupção inerente ao atual sistema político. O mais interessante e positivo é a revelação de que essa percepção não é privilégio da sociedade civil.
Exemplo disso foi um recente debate na TV Câmara — no programa Expressão Nacional —, na qual dois deputados federais (um da base do governo, outro da oposição), um ministro do TCU, e um diretor da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) abordaram pontos essenciais da relação entre o Estado brasileiro e as OSCs, a saber: as implicações do presidencialismo de coalizão e o papel dos partidos, o diagnóstico de que “o Estado está frouxo”, a distorção do pacto federativo e a concentração de recursos e de poder na União, a incapacidade do Estado de gerenciar convênios, etc.
Um elemento importante dessa discussão — e que contribui para deslocar a discussão da criminalização das ONGs — é a informação produzida por um estudo da Fiesp, segundo a qual o custo anual da corrupção no país é avaliado entre R$ 45 bilhões e R$ 69 bilhões, enquanto o montante total de convênios com ONGs em 2010 não passou de R$ 3 bilhões. Por outro lado, o ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União, tem deixado claro que o combate à corrupção só será vitorioso na medida em que se ponha fim à impunidade dos corruptos, o que depende no essencial de uma revisão dos procedimentos judiciais.
No tocante à questão específica dos instrumentos e das modalidades de repasse de recursos públicos às OSCs, o que desafia a nossa compreensão é a persistência e a força dos bloqueios à revisão do marco regulatório das entidades sem fins lucrativos, embora tenha sido unânime — no seminário promovido pela Secretaria Geral — o reconhecimento da profunda inadequação da legislação atual e o sentimento de insegurança jurídica por parte das OSCs e de muitos agentes governamentais. Além de não conter nenhuma política de fomento ao setor, seu aspecto mais criticado é a legislação dos convênios, que trata as OSCs impropriamente como municípios e que traz uma concepção de dominação das OSCs pelo Estado.
A Abong defende há anos a revisão dessa caótica legislação e a criação de um marco legal que reconheça a legitimidade e regule de forma transparente o acesso dessas organizações a fundos públicos. Apesar de a revisão do marco regulatório ter sido apresentada ao governo Lula, em 2003, como ponto fundamental da agenda das ONGs, a questão ficou paralisada, talvez pelo ambiente político desfavorável, marcado por duas CPIs hostis às ONGs e ao papel que elas desempenham na radicalização da democracia e na crítica ao atual modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente insustentável.
Essa agenda só agora foi retomada, graças ao compromisso político assumido pela então candidata Dilma Rousseff, e reafirmado como presidente. Não se pode descartar, no entanto, que subsistam no governo resistências ao reconhecimento do papel das organizações da sociedade civil e à definição de um novo marco regulatório.

* Jorge Eduardo S. Durão é assessor da diretoria da Fase.
** Publicado originalmente no jornal Valor Econômico e retirado da Plataforma OSC.
(Plataforma OSC)

 

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