A declaração da corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon, acerca da existência de bandidos togados no judiciário e a resposta corporativa da Associação dos Juízes geraram grande celeuma. Os monopólios dos meios de comunicação aproveitaram a situação para requentar a surrada tese da "banda podre", já aplicada às forças armadas, à polícia, ao executivo e ao legislativo.
Na verdade, esta é uma falsa polêmica, já que o apodrecimento do judiciário está em perfeita correspondência com o apodrecimento do Estado.
Nas páginas de A Nova Democracia temos pisado e repisado na denúncia da decomposição de um Estado que já nasceu podre, o velho Estado brasileiro. Como o Estado opera através de suas instituições não poderia ser de outra forma senão que apodrecidas fossem estas instituições. Ainda na edição passada nos referimos ao papel que cumpre o exército em particular e as forças armadas como um todo, como instituições de um Estado burocrático-latifundiário, o qual é o instrumento por excelência da perpetuação de um capitalismo burocrático, montado sobre uma base semifeudal e semicolonial.
Também, sobre esta base, foi gerada na sociedade uma cultura de privilégios das classes exploradoras e que beneficia, além do mais, as "elites" de cada instituição deste Estado, em consonância com o lugar que ocupam na estrutura de classe do mesmo. Surgem daí, entre outras mazelas, o patrimonialismo, o compadrio e o sentimento de impunidade que, por seu turno, é fortalecido pela legislação, por elas mesmas elaborada, e pela teia de relações estabelecidas entre os grupos de poder e seus agentes em cada instituição.
Como esta cultura se reproduz sobre si mesma, cria um círculo vicioso que impede que, de dentro do Estado, possa haver, de forma consequente, a limpeza ou faxina do lixo acumulado, menos ainda sua enfermidade natural.
Sua majestade o juiz
A corregedora Eliana Calmon fala de cátedra, pois ninguém mais que os juízes conhece em profundidade as entranhas do judiciário com suas falcatruas, marmeladas e jeitinhos. Eles sabem quem vende sentenças, quem é amigo do "Rei", quem representa na instituição os interesses de tal ou qual grupo econômico, quem se aproveitou da passagem pelos tribunais para montar banca com relações e informações privilegiadas, quem foi nomeado para tal cargo e a troco de quê, enfim, de todo tráfico de influências e de outras espécies.
A literatura também nos fornece uma fartura de casos do tipo "qualquer semelhança é mera coincidência" para os quais seria mais acertado afirmar que "qualquer coincidência é mera semelhança". O poeta, escritor e comunista cearense Jader de Carvalho pontuou magistralmente o que é a vida de juiz no seu romance Sua majestade o juiz. Ele escolheu o cenário do sertão cearense sob o domínio do latifúndio, pai de todas as secas, para esculpir a figura do juiz servil às oligarquias e grupos de poder que vai alugando sua consciência, ou a falta dela, ao mesmo tempo em que vai ascendendo, de entrância em entrância, até ocupar uma cadeira no Tribunal. Uma prefeita oligarca, por exemplo, abusa do adágio "tem caso que pode mais que a lei" para extrair do meritíssimo sentença favorável aos seus interesses e em total conflito com o mérito da questão. E, por toda sua vida de magistrado, sua majestade o juiz não fez mais do que mandar para o espaço o "fumus boni juris".
O Judiciário e o caráter de classe do Estado
Cultivando uma negativa tradição de "República dos Bacharéis" onde até bem pouco tempo apenas as famílias das classes dominantes tinham acesso a uma faculdade e, preferencialmente, escolhiam o curso de direito para um, alguns ou todos os seus filhos, a sociedade brasileira foi se formando com este estigma. Só recentemente passou a existir certa democratização do acesso aos cursos superiores, inclusive, os jurídicos. Os filhos das famílias oriundas das classes dominadas da sociedade, entretanto, encontraram nos currículos e conteúdos ministrados em sua formação jurídica, os dogmas responsáveis pela existência de uma sociedade estratificada e as justificações de um suposto Estado acima das classes e do "jurídico" como espaço do conflito.
Os interesses de classe é que determinam a rapidez ou lentidão da Justiça. Para tirar um rico da cadeia ou para colocar lá um pobre ela é rápida, já para colocar um rico na cadeia ou para tirar um pobre ela é sumamente lenta. Veja-se, por exemplo, em que pé estão os processos do "mensalão", da "operação castelo de areia", da "operação satiagraha" e tantas outras que "morrem" nas gavetas dos ministros do Superior Tribunal de Justiça ou até mesmo do Supremo.
As recentes decisões, principalmente das instâncias superiores do judiciário, tirando da cadeia, em menos de 24 horas, figurões pegos "com a boca na botija" ou desqualificando as provas obtidas nos inquéritos policiais são resultado das pressões das classes dominantes, através de suas entidades e dos monopólios de comunicação, como é o caso desta notícia publicada pelo jornal Folha de São Paulo: "A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), a OAB-SP e a Associação Paulista do Ministério Público (APMP), dentre outras entidades, assinaram o manifesto intitulado "Movimento pela legalidade, contra o arbítrio e a corrupção". O manifesto repudia a violação da dignidade da pessoa humana e critica as ações da Polícia Federal em escritórios de advocacia e nas empresas. Traduz a preocupação com o exagero e desproporcionalidade das megaoperações realizadas em empresas brasileiras. Essas operações, envolvendo prisões cautelares causadoras da execração pública de cidadãos, não observam o princípio do devido processo legal e do princípio da presunção de inocência (Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 jul. 2005, p. B4).
Nem o judiciário e muito menos estas entidades manifestam o mesmo interesse em defender o cidadão, quando a polícia e o exército invadem os morros, dão de patadas às portas de humildes lares, vexam, agridem e torturam as pessoas. Também, nada lhes incomoda enquanto pessoas com prisão já ultrapassando o tempo para o qual foram apenados ficam mofando nos presídios. A situação no campo vai pelo mesmo caminho uma vez que as liminares e sentenças pró-latifúndio não deixam dúvida quanto à sua parcialidade. E não importa que a Constituição Federal argua a função social da terra e mesmo o atestado do INCRA de improdutividade de determinada propriedade, a decisão judicial é quase invariavelmente o mesmo carimbo favorável ao latifúndio.
Estas atitudes são provas incontestes do caráter de classe da sociedade, do Estado e de sua "Justiça".
Exceções que confirmam a regra
Não há como negar que existem exceções. Entre juízes e, muito raramente, entre desembargadores e ministros existem os que procuram exercer o seu papel buscando o ideal de fazer justiça. A criação da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), definida como "uma associação, sem fins lucrativos, formada por juízes brasileiros que acreditam na justiça como serviço público, na democratização do poder judiciário, e na efetivação dos direitos humanos" demonstra uma preocupação com o apodrecimento do judiciário, mas, por outro lado, é extremamente insuficiente para alcançar os fins a que se propõe, uma vez que se ilude em atingir seus nobres fins a partir de dentro do velho e podre Estado brasileiro.
Ora, somente um processo revolucionário que aponte para uma Nova Democracia, pois, poderá atingir estes fins. Esta é a tarefa que a realidade brasileira nos cobra hoje, com a máxima urgência, visto ser uma necessidade "prá ontem". Ingênuo é, portanto, querer alcançar estes objetivos sem liquidar o semifeudalismo, o capitalismo burocrático e a condição semicolonial do país, através da destruição completa de seu guardião-mor, o velho Estado genocida e suas carcomidas instituições.
De fato existe a banda podre, só que como banda da sociedade: o velho Estado e umas quantas instituições afins.