Weblog de Anistia International (USA) de 09/05/2011. Clicar aqui.
Em menos de 10 meses, os direitos da sexualidade tiveram duas vitórias em nossa região. Em julho de 2010, no meio a uma extrema agitação e um clima de intensa provocação de setores conservadores, o Senado argentino aprovou, por escassa margem, a lei que implanta o casamento entre pessoas do mesmo gênero, preservando para os novos casais todos os direitos garantidos às uniões heteroafetivas. O fato surpreendeu no país e fora dele, por causa da forte tradição confessional da Argentina, onde as forças de direita são as mais repressivas em todos os aspectos, incluindo perseguição étnica, religiosa e sexual. Agora, o Supremo Tribunal do Brasil concedeu direitos familiares à união homoafetiva, um fato incomum nas decisões da corte, mas bem menos surpreendente que o pronunciamento argentino.
A novidade, por parte do Supremo, é a unanimidade da votação. Alguns observadores avaliam que o tribunal possui cerca de um 40% de magistrados progressistas, embora as qualificações dos analistas jurídicos não possuam muito rigor. Então, poderia ter-se esperado uma vitória apertada, em vez de uma vitória total. Indagar, porém, sobre os motivos desta “virada” da corte, não é apenas assunto para fofoca sobre a mentalidade dos juízes: é fundamental para antecipar futuras decisões do STF, e sua eventual influência sobre o Parlamento, que se mostra medroso em relação com propostas progressistas.
Preceitos Fundamentais
Já em 2008, no Rio de Janeiro, foi levantada formalmente a objeção de que o atual sistema de união heterossexual, que ignorava outras combinações sexuais, descumpria “preceitos” fundamentais da Constituição, como o direito à dignidade, ao trato igualitário e à liberdade, pois impedia que as uniões homossexuais fossem consideradas tão reais e legítimas como as outras. Em 2011, o censo registrou 60 mil casais homoafetivos que vivem em união estável, mas o número real é impossível de calcular, tendo em conta os riscos de manifestar-se numa sociedade onde a homofobia é muito agressiva. Sob a base desse censo, é óbvio que a união homoafetiva é um fato de alta relevância para reconhecer a milhares de casais os direitos econômicos e trabalhistas dos quais gozam os casais heterossexuais.
A primeira objeção arguição formal veio do governador do Rio de Janeiro (vide), em cuja administração se registrava um número expressivo de casais homoafetivos estáveis. Ele argumentou que os poderes públicos descumpriam esses preceitos ao tratar os cidadãos homossexuais como inferiores.
Na Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 132, de 25/02/2008, Sérgio Cabral menciona também a insegurança jurídica em que vivem as pessoas cuja união homoafetiva não é reconhecida pelo estado, apesar de que esse número de uniões cresce continuamente, seja que a lei aceite ou não a situação. A petição enfatiza que aquele descumprimento parece mostrar mais um desprezo dos poderes públicos que a simples indiferença, dificultando benefícios como licença por doença de familiar, herança, pensão alimentar, etc.
Uma segunda ação, combinada com esta, foi apresentada em julho de 2009, pela procuradora geral da República, Deborah Duprat, na ADPF 178 para fazer com que o STF declarasse o caráter obrigatório do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, com as mesmas exigências e faculdades que não caso hétero. Pede, também, que os mesmos direitos e deveres dos pares nas uniões estáveis sejam estendidos aos parceiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Os responsáveis pelo descumprimento desses preceitos são o Código Civil (que não proíbe, mas também não legaliza a união homoafetiva), e o artigo 226 (§3º) da própria Constituição, que omite mencionar a formação de família no caso de pessoas do mesmo gênero. Com efeito, nesse § do texto constitucional se afirma que...
“... é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
É importante notar que, quaisquer que fossem as idéias dos constitucionalistas, o fato é que o poder de formar família está dado aos casais do tipo homem-mulher como condição suficiente, porém não como necessária, sendo sua extensão ao caso de pessoas do mesmo sexo perfeitamente jurídica. Contrariamente ao que grupos religiosos e outras forças conservadoras pretendem fazer crer, a Constituição não está definindo família, mas aplicando o conceito ao caso de homem e mulher. Estender o alcance deste artigo não requer uma emenda constitucional.
A procuradora Duprat menciona os preceitos que estariam sendo ofendidos: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a igualdade (art. 5º, caput), a vedação de discriminações odiosas (art. 3º, IV), a liberdade (artigo 5º, caput) e a proteção à segurança jurídica. (Vide)
Um dos advogados defensores foi Luís Roberto Barroso, já comprometido com várias causas de direitos humanos, como a do aborto de mãe com feto sem cérebro, os conflitos com a biotecnologia e, nos últimos tempos, com a defesa de Cesare Battisti.
No julgamento do STF do dia 05/05/2011, votaram um total de 10 magistrados e, destes, 7 aprovaram integralmente as arguições apresentadas, enquanto outros 3, embora se manifestassem finalmente de acordo, opuseram certos reparos, que segundo os comentários de alguns jornalistas, não pareciam muito claros. Aliás, vários ministros (incluindo alguns que votaram da maneira incondicional em favor das arguições) exigiram que suas justificações de voto não fossem divulgadas, um fato pouco frequente. De qualquer maneira, as ações estão reconhecidas por unanimidade.
Este é um passo importante na defesa dos direitos humanos e a luta contra discriminação, mas faltam ainda vários outros, que devem culminar na produção de leis que legitimem ou casamento e coíbam a homofobia. Este progresso no STF, sem dúvida estimula o otimismo, mas não deveria cercear o estado de alerta. É possível que as flutuações recentes na composição do STF tenham produzido alguma leve variação ideológica, mas mesmo isso ainda deve ser provado. Por enquanto, os grupos de direitos humanos devem ter em conta que a justiça brasileira está assentada em tradições etnocentristas, classistas e messiânicas.
As Tendências do Supremo
A entusiasmada notícia lançada por Anistia Internacional no seu Weblog americano, cuja transcrição aparece na epígrafe deste artigo não é exagerada. O que pode não ser totalmente exato é a crença que rodeia o ambiente progressista brasileiro de que há também uma mudança nas tendências do STF. Pode ser, mas é mais prudente analisar quais são as causas que conduziram a corte a agir com esse inesperado liberalismo.
A maioria dos casos julgados pelo STF não envolvem de maneira prioritária os direitos humanos em sentido estrito. Exemplos típicos são a lei da “ficha limpa”, as de aposentadorias de funcionários, de acumulação de cargos, questões relativas a júris, e assim em diante. Estes são problemas que envolvem direitos específicos e não diretamente os direitos básicos das pessoas e, em muitos casos, não passam de questões burocráticas.
Inclusive nas extradições concedidas pelo STF antesdo caso Battisti, muitas sentenças não envolviam os Direitos Humanos, pois os requerentes eram países com sistemas penais relativamente avançados, e as razões dos requerimentos pareciam legítimas. Em alguns casos reconhecidos de perseguição, a corte negava a extradição, pelo menos quando não existiam pressões políticas importantes. Entre 1969 e 2007 foram negadas 6 extradições nestas circunstâncias.
Mas, na última década, os poucos julgamentos em que os direitos humanos estiveram envolvidos, a corte se pronunciou quase sempre de maneira opostaao respeito desses direitos, salvo no caso da extradição 1008, onde apenas o relator Gilmar Mendes votou contra a proteção ao padre colombiano Oliverio Medina, e a juíza Ellen Gracie, que estava ausente, manifestou depois que também teria votado contra. Em outros casos, o STF se pronunciou de maneira ambígua, ou então, contrária a garantir os direitos dos envolvidos.
Os mais lembrados possivelmente sejam os casos das células tronco, do aborto de anencefálicos, dos massacres e genocídios nos campos a nas prisões, da impunidade dos agentes da ditadura, e da extradição de Cesare Battisti.
Nos casos de atrocidades em que estão envolvidos militares e policiais, a “moderação” da corte está motivada por seu espírito corporativo. Embora o STF não tenha nenhuma necessidade de estimular torturadores, juízes monocráticos, tribunais de menor nível e, sobretudo, promotores, costumam ver no torturador alguém que facilita a confissão dos presos e, portanto, ajuda em sua tarefa de encher as celas com detentos, o que, por sua vez, aumentará seu prestígio. No STF há casos evidentes de juízes que repudiam pessoalmente a tortura, mas possivelmente entendam que manter a intocabilidade das forças armadas e de segurança é uma maneira de garantir o poder monolítico.
Na sessão destinada à discutir se a anistia de 1979 incluía torturadores, estupradores e genocidas da ditadura, esta “solidariedade” entre magistratura e militarismo se revelou tão forte como em todo o resto da história. Apenas dois ministros votaram contra, e só um com argumentos vinculados diretamente aos direitos humanos.
No caso das células-tronco (em maio de 2008), alguns juízes votaram contra a pesquisa ou acrescentaram limitações que a tornavam quase inviável do ponto de vista prático. Mesmo assim, a pesquisa foi liberada, mas por apenas um voto de vantagem: 6 contra 5.
No caso do aborto, uma liminar do ministro Marco Aurélio foi rejeitada por 7 juízes. Um deles votou até pela continuidade do processo criminal contra a mulher que estava abortando um embrião desprovido de cérebro.
O caso Battisti está explicado por causas múltiplas: o ódio pela esquerda, a realização de uma vingança requentada, a subserviência com a Itália, as numerosas formas de pressão, o sensacionalismo, e possivelmente algumas vantagens ocultas. Em todos estes casos se juntavam as seguintes condições:
1. Os assuntos tinham baixa repercussão (inclusive o de Cesare Battisti), ou então, tinham repercussão deformada.
2. Algumas decisões envolviam algum dado básico, vedado à grande massa, que as elites mantêm na privação do conhecimento (como no caso das células-tronco),
3. Outras, como no caso do aborto, envolviam um sentimento de culpa de que aquele ato poderia ser considerado uma espécie de infanticídio (uma convicção que até alguns defensores dos direitos humanos também padecem). Além disso, os milhões de garotas grávidas prejudicadas pela lei são membros dos setores mais pobres. Pessoas da classe média e até alguns populares, poderiam pagar um aborto profissional numa clínica clandestina. As que morrem nas mãos de curandeiras ou açougueiros fazem parte do Brasil invisível, para cujos membros não existe o direito, e a lei existe apenas para puni-los por infrações imaginárias.
No caso da união homoafetiva, a situação é diferente: existe uma enorme massa de preconceitos, mas, por outro lado, também há um grupo influente de pessoas simpatizantes. Os grupos GLBT atravessam todas as classes sociais, e neles há muitos intelectuais, artistas, cineastas, comunicadores, pessoas famosas e até membros dos poderes públicos, o que torna mais difícil seu ataque. Políticos influentes e respeitados estão engajados sem limitações na causa. A Parada do Orgulho Gay em São Paulo é a maior do mundo. Aliás, a onipotente mídia brasileira, que influi no que os poderes públicos devem fazer, têm, neste caso, uma posição positiva. Com entusiasmo variável, a maioria dela se mostra respeitosa dos direitos dos gays, e aqueles veículos menos favoráveis não se manifestam abertamente contra.
Além disso, a opinião pública tem mudado algo. As experiências sexuais alternativas, mesmo em pessoas totalmente heterossexuais, têm revelado a muitos que aqueles preconceitos eram sem sentido. Com efeito, desde o fim das ditaduras na América Latina, na década de 80, a mídia e a arte começaram a receber a influência do erotismo, mantido sufocado nestes países desde sua fundação por castas escravocratas e tirânicas. Essa familiaridade com o sexual torna cada vez mais marginal a política dos puritanos e linchadores, embora seu número seja ainda alarmante. Aliás, mesmo que alguns setores da própria esquerda entendam que existe um processo de exagero e “alienação”, o contato com a sexualidade é uma alta fonte de audiência para os meios audiovisuais.
Em fim, mesmo que a raiva dos homofóbicos possa ser aterrorizante, o STF sabe que o clamor em favor da medida não é tão pequeno. Qualquer juiz que votasse contra, estaria se opondo a algo como 20% da parte mais esclarecida da sociedade. No outro 80%, salvo pequenos grupos de ódio, hooligans, fascistas e seitas religiosas (que dificilmente somem mais de 2% do total), ninguém vai fazer militância contra a decisão, porque quase todo linchador precisa muitas garantias de impunidade para agir. Rígidos chefes de família ou senhoras piedosas podem uivar aos céus, mas serão poucos os que saiam numa passeata ou tenham a capacidade de escrever algo que mova o interesse do leitor.
Então: os juízes tinham muitos motivos para sentir-se amparados se votam a favor, e poucos se votassem contra.
A cúpula do STF se gaba de zombar da opinião da população, como disse o presidente Cezar Peluso em seu discurso de posse, ao referir-se as “soluções peregrinas” reclamadas pela sociedade, mas essa zombaria é pura aparência. Na prática, o judiciário precisa de acordos e negociatas com outros poderes, que, por sua vez, dependem do consenso social.
A Jurisprudência
Deve-se diferenciar entre a importância do reconhecimento de direitos para uma comunidade perseguida pelo fanatismo e o puritanismo, e o significado que esta ação assume desde o ponto de vista do judiciário.
Não há dúvida da importância social da decisão de reconhecer a união estável homoafetiva como equivalente de família. Doravante, a comunidade gay terá um motivo para sentir-se mais segura e poderá resolver, parcialmente, alguns de seus problemas de convivência. Digo “parcialmente”, porque nem todos os juízes disseram claramente de que maneira concreta a vida da coletividade gay ficará beneficiada, nem mesmo quais direitos específicos a lei está reconhecendo. Nem todos os magistrados sabem dizer se decorre desta decisão do tribunal que os gays possam adotar crianças, por exemplo. De qualquer maneira, a repercussão social é suficiente para alentar novas lutas.
A outra questão é interpretar o significado da atitude do STF. Pela história recente, seria difícil indicar algum membro do tribunal que seja totalmente progressista. Alguns juízes têm tido votos progressistas em quase em muitas questões mas não em outras, e a enorme maioria deles se alinhou em favor da impunidade dos carrascos da ditadura, talvez a mais iníqua de todas as decisões do tribunal desde os anos 80.
No caso da união homoafetiva temos, por primeira vez em muito tempo, unanimidade na votação de uma decisão transparentemente progressista. A reação imediata de muitas pessoas foi: O Supremo está mudando! Será que está mesmo?
Na seção anterior vimos que as ações contra a comunidade gay não beneficiam concretamente a direita. Se os gays possuem ou não direitos não tira nada do poder do empresariado, dos senhores feudais nem dos financistas brasileiros. A perseguição dos gays, como a dos grupos raciais não brancos, como das religiões não cristãs, é produto do ódio que a direita usa como motor da massa, para manipulá-la com fins específicos. Apenas os setores mais cavernícolas, como o castrense, o confessional e os de segurança, estão possuídos de um ódio militante por razões sexuais ou raciais. As massas que são arrastadas pelo ódio deflagrado por estes grupos não possuem interesse específico nenhum: apenas satisfazem uma sede de violência e fanatismo, como foi longamente provado pelos que analisaram a popularidade do nazismo.
Mas a direita possui um setor inteligente que sabe quais de suas ações são úteis e quais são apenas descargas de ódio. Os ideólogos desses setores podem se sobrepor a suas rejeições e a sua “moral”, e entender que nada ganham com conceder espaço ao ódio da direita mais obscurantista e improdutiva. Aliás, foi essa a razão pela qual nem toda a direita ocidental apoiou o fascismo nos anos 30 e 40, porque o ódio deste era desnecessário para a tarefa prática do capitalismo (a obtenção de lucro) e podia acabar estragando o objetivo principal.
Por outro lado, apesar de simular uma espécie de “imaterialidade” acima da vida e da morte, que o tornaria todo-poderoso, o STF está, como todos sabem, em permanentes negociações com os políticos (e não apenas os brasileiros), com a diplomacia, e com o poder privado. Aquela justiça tarjada usa, em realidade, um poderoso binóculo de raios X de longa distância. Apesar de suas declarações espetaculares, os “excelsos” sabem que não podem prescindir de toda a sociedade e que, pelo menos, devem ter em conta os donos do poder, que estão, por sua vez, sob a pressão eleitoral.
Em especial, o STF não pode furtar-se de ignorar os reclamos de todos seus “subordinados”. Juízes monocráticos e tribunais regionais devem ser tidos em conta, para não criar um clima de “insegurança jurídica”. Este é um assunto chave. Reclamações de casais homoafetivos que pediam na justiça soluções legais para oficializar sua estabilidade têm sido muitas vezes decididas de maneira afirmativa, nas diversas regiões do país.
A ONU verificou que o poder Judiciário Brasileiro é extremamente conservador, o que incluso foi declarado em 2004 pela relatora Asma Jahangir, militante de direitos humanos paquistanesa, que, em sua carreira de advogada naquele difícil país, deve ter tido muitos motivos para assustar-se. Asma esteve em prisão temporária por ser opositora e amargou perseguições e ameaças por sua militância em DH. Que possa ter-se sentido impressionada pelo Brasil não é poucas coisa. (Vide)
Apesar disso, em diversos aspectos parciais relativos à união homoafetiva, como recebimento de pensão, partilha de bens, etc., existe bastante jurisprudência nos Estados de Minas, de Santa Catarina e até de São Paulo, e decisões que amparam completamente essa união já foram várias vezes produzidas pelos tribunais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. O STF quiçá não goste confrontar-se contra todas estas decisões, especialmente sendo que isso não traria nenhuma vantagem. Sem dúvida, o assunto dói a alguns inquisidores, mas nem todo pode ser lucro. Talvez o único que teria tido vontade para se opuser a esta decisão teria sido Menezes Direito, mas isso só Deus sabe, porque Ele o chamou a sua destra há algum tempo.
A Oposição
Como não podia ser diferente, a Igreja Católica, representada pela CNBB, não perdeu a oportunidade de protestar pelo que considera uma “destruição” da família. As religiões monoteístas, e não apenas o cristianismo, consideram família um núcleo reprodutivo unido sob a benção teocrática, o que não coincide com o sentimento natural da espécie humana (e de outras famílias que existem entre os gêneros de mamíferos superiores, aos quais, gostemos ou não, pertencemos).
Uma família, como já perceberam os romanos, é um conjunto de afetos e amizades que possuem um projeto doméstico e social comum, e que pode ser heterossexual e monogâmica, mas já foi pansexual, poligâmica e até incluiu nela o próprio pessoal de serviço (famuli) e os amigos. A família entendida pelas religiões é mais apta para a consolidação do poder, porque com ela é necessário apenas que o chefe (pater famílias) seja convencido de certa ideologia ou ação, para que a imponha a todos. Isto facilita o esforço de dominação. Aliás, a família educa a seus filhos e estes aos seus, perpetrando o sistema de valores, como se conseguiu de maneira quase imbatível durante a longa Idade Média.
O argumento é tão velho como, pelo menos, as epístolas de São Paulo de Tarso, ou as dissertações dos padres da Igreja como Tertuliano. Se quisermos encontrar o máximo de radicalismo, é só consultar Santo Agostinho cujos dias de glória aconteceram faz apenas 1600 anos. Pareceria que este argumento não merece nem uma linha, porém, tendo em conta a fama de “progressista” atribuída a Igreja do Brasil (por indução com base numa minoria de católicos altruístas que têm sofrido cada vez mais baixas desde 1980), pode ser interessante analisar os motivos que a Igreja, mais que outras formas de direita, tem na fervente preservação da heterossexualidade.
É possível que nos períodos da pré-história, quando surgiram as primeiras formações de classe, os membros das classes dominantes pudessem dominar as outras sem necessidade de crenças religiosas ou fetiches éticos, apenas com o uso da força física. Mas, essa situação obviamente teria sido impossível nas primeiras grandes civilizações. Em certos períodos, o número de explorados era tão grande que a força sozinha era insuficiente. Muitos podiam ser presos ou executados, mas os que deviam colaborar com os executores também pertenciam a classes pobres e precisavam de alguma convicção para ser mobilizados.
A República e, especialmente, o Império Romano, deram um importante exemplo. A mistura de repressão e gratificações, demagogia e violência não evitou revoltas de escravos, de plebeus e até de patrícios menores contra os nobres. Quando Agostinho percebeu a necessidade de armar os exércitos da “Cidade de Deus” para combater os impérios terrenais, encontrou a solução. Os povos deviam temer coisas que não pudessem entender, como pecado, inferno, penitência, dor eterna, etc., para tornar-se dóceis e manipuláveis.
Nesta mecanização do humano, a sexualidade jogou um grande papel. Normatizar a liberdade era impor um empecilho ao prazer mais intenso, o único, aliás, que gerava vida, que era incondicional, e que produzia benefícios para todos e prejuízos para ninguém. Mas fazer aparecer essa forma de felicidade como repulsiva era uma maneira de dominar os humanos: era mostrar que as coisas não eram como eles acreditavam, mas que a submissão a uma única religião e uma única hierarquia era a maneira de ganhar a felicidade eterna. Afinal, o que importava viver 50 anos sem amor nem carinho e sofrendo todo tipo de humilhações, se você tinha a eternidade para desfrutar da visão divina? Inicialmente, o número de pessoas que acreditou nisto era muito grande, mas nunca faltaram os céticos. A sabedoria da Igreja consistiu em extirpar eles cada vez que apareciam.
A Igreja lutou durante séculos contra o direito natural e, apesar de mandar à fogueira milhares de hedonistas e “farristas”, acusados de bruxaria, não conseguiu extirpar o desejo pelo prazer. Mas, deve reconhecer-se que foi bem sucedida e, antes de diminuir seu poder, fez bastante difícil a vida de toda a humanidade. Em ocidente, as esperanças da volta de um império teocrático acabaram com a derrota do fascismo. A maioria dos vencedores era secular, salvo os Estados Unidos que tampouco formavam uma teocracia sólida, mas uma sociedade supersticiosa dominada por numerosas seitas, defensoras de um sistema dito democrático que produzia grande repulsa no papado.
Desde o começo, a Igreja percebeu a dificuldade de combater toda a sexualidade (como pretendiam os padres gregos, como Orígenes, ou o próprio São Paulo), pois se as pessoas não faziam sexo a população não cresceria. Isto seria um problema para os exércitos da “Cidade de Deus” que precisavam muitas tropas para combater seus inimigos.
Então, todo o aborrecimento podia ser descarregado na homossexualidade, que já era criticada pelos judeus e dava certo apóio histórico à Igreja. Para os católicos, que foram os únicos cristãos que conseguiram se organizar militar e politicamente da maneira sólida (tanto ou mais, às vezes, que o imperador, como mostra a querela que só foi resolvida na concordata de Worms), a regulação da vida privada em todos seus aspectos foi essencial, e sua capacidade de fazê-la cumprir se estendeu até 1832, quando foi enforcado, na Espanha, o último acusado de bruxaria pela Inquisição (pelo menos, o último executado oficialmente).
Desde o fim do fascismo, a Igreja decaiu vagarosamente, e hoje é um fato visível que os templos europeus estão vazios em sua maioria, salvo em alguns poucos países, e que até os hierarcas de União Européia recusaram incluir o cristianismo como um dos princípios básicos da União. Até o próprio Papa viajou aos EEUU para deixar claro que a única esperança da Igreja está nas Américas.
Um dos setores das igrejas evangélicas pentecostais brasileiras (realmente, não sei reconhecer qual, dada a velocidade de surgimento e evolução), também protestou contra a decisão da união homoafetiva, mas foi num tom mais moderado. Seu “papa” pediu aos dóceis fieis que mandaram e-mails de protesta. De maneira diversa aos católicos, os evangélicos, que sabem melhor como é duro ganhar o dinheiro, não gastaram em advogados.