O cabo Anselmo saiu da tumba para provocar sustos e asco nas pessoas de
bem, no Linha Direta Justiça que a Rede Globo levou ao ar no último dia
5.
Trata-se do mais célebre dos militantes da resistência à ditadura
militar que, no jargão dos próprios órgãos de segurança, atuaram como
cachorros da repressão, armando ciladas para os companheiros.
Seu caso voltou à baila por ele estar pleiteando reparação de perseguido político à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
A reconstituição de sua história em tevê aberta teve como ponto alto um episódio que o grande público ignorava (embora já fosse conhecido pela minoria informada), assim descrito por Élio Gaspari em A Ditadura Escancarada:
“A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.”
Foi chocante também, para o telespectador comum, ficar sabendo que Anselmo, no afã de bem servir à repressão, causou a morte inclusive de sua amante, a paraguaia Soledad Barret Viedma, que estava gerando uma criança dele; e que aqueles militantes estavam antecipadamente marcados para morrer, tanto que Anselmo chegou a pedir pela vida de Soledad, se fosse “possível” poupá-la do destino dos demais.
A realidade, portanto, foi bem diferente dos contos-de-fadas que os sites direitistas propagam, tentando fazer passar por operações policiais rotineiras as atrocidades cometidas pela ditadura militar.
Este Linha Direta, surpreendentemente, não deixou de mostrar os esqueletos que o regime dos generais tinha no armário. Mas, talvez tenha sido condescendente com Anselmo, ao encampar sua versão de que só teria mudado de lado em junho de 1971.
Antigos colegas da Marinha garantem que, durante os eventos que desembocaram na quartelada de 1964, ele já era agente do Cenimar, com a missão de radicalizar ao máximo a agitação entre os sargentos, cabos e soldados, de forma a provocar a indignação dos superiores. Afinal, a oficialidade hesitou bom tempo antes de aderir ao núcleo golpista, só o fazendo quando passou a ser contestada abertamente pelos subalternos.
Perseguido político? – Há outros fatos suspeitos.
Logo após o golpe, Anselmo pediu asilo na embaixada mexicana. Mas, embora fosse uma das pessoas mais procuradas do País, resolveu sair andando de lá, sem ser detido.
Logo mais foi preso, exibido como troféu pela ditadura... e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, diz Gaspari, “Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar”.
A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar: “Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido”.
Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.
Só retornaria ao Brasil em setembro de 1970, iniciando no ano seguinte sua trajetória de anjo exterminador.
Se ficar estabelecido que ele sempre foi um agente duplo, Anselmo não fará jus à anistia federal; caso tenha realmente sido um perseguido político até 1971, seus direitos não são anulados pelas indignidades posteriores.
Portanto, o programa da Globo, ao não aprofundar tal questão, serviu ao principal interesse de Anselmo neste momento.
Ele, inclusive, tem posado de vítima nas entrevistas, deixando de vangloriar-se por ter causado a morte de “cem, duzentos” militantes, como antes fazia (aliás, com exagero). No entanto, mau ator, a hipocrisia transparece em sua voz. A pele de cordeiro não lhe cai bem.
De resto, o Linha Direta não aliviou também para a ditadura, de forma que os telespectadores tiveram uma rara oportunidade para conhecer a verdade, num veículo em que ela não é habitual...
Massacre no bom sentido – A emissão terminou com uma chamada para o chat em que o caso foi debatido pelo ex-preso político Ivan Seixas e o advogado de Anselmo, Luciano Blandy.
Foi mais um massacre, desta vez no bom sentido. Ivan levou o advogado às cordas várias vezes, como quando demoliu a versão de que Anselmo teria cooperado com a repressão para não ser, ele próprio, executado.
Se isso é duro de engolir nos episódios ocorridos no Brasil, torna-se absolutamente inverossímil durante a estada dele no Chile. Se não aproveitou a oportunidade para escapar das malhas da repressão quando estava num país democrático e soberano, é porque, como ressaltou Ivan, já pertencia de corpo e alma à ditadura, como assalariado dos órgãos de segurança.
Foi igualmente infeliz o advogado a referir-se ao Genoíno e a mim como ex-militantes cujos casos seriam semelhantes ao do Anselmo. Enviei de imediato respostas e interpelações que os organizadores do chat ignoraram, mas minhas queixas posteriores surtiram efeito e o site do Linha Direta publicou uma nota com minha defesa:
“A acusação que ele me fez no chat, de ter sido delator, foi desmentida em 2004 pelo historiador Jacob Gorender, depois que lhe enviei um relatório secreto militar que viera a público e confirmava inteiramente minhas alegações. Em carta enviada à imprensa, Gorender me isentou de qualquer responsabilidade pela descoberta da escola de guerrilha e o cerco a Lamarca. Exumar essa versão já superada foi uma represália do advogado por eu ter escrito e divulgado, na véspera do debate, um artigo contundente sobre o Cabo Anselmo, intitulado ‘Anistia para um canalha’ – afirma Lungaretti.”
Foi citada nessa nota também a resposta que o companheiro Ivan deu no próprio chat:
“Eu acho um absurdo o que você está falando. Essas pessoas todas que você falou, elas foram presas, foram muito torturadas e elas não colaboraram. Não passaram a ser assassinas a serviço do Estado. Elas passaram a ser presas e perseguidas. Você colocar em pé de igualdade as pessoas torturadas com um cara desses (Anselmo), me desculpe, mas é inaceitável. Não tem o mínimo sentido. Os critérios para aceitação do processo de anistia com certeza são de perseguição, de pessoas que tiveram suas vidas prejudicadas. Esse cara [Anselmo] foi assalariado, você sabe disso.”
O advogado Blandy depois me escreveu para afirmar que não havia me citado como delator da área de treinamento guerrilheiro em Registro, mas sim como exemplo de militante perseguido pela própria esquerda por causa de acusações infundadas (como, no entender dele, é o caso do Anselmo).
Não foi essa a impressão que ficou do que ele disse no ar, nem foi assim que entendemos o Ivan, eu e o próprio redator da Globo que escreveu a notícia publicada no site. Mas, como Blandy não é um comunicador experiente, admito a hipótese de que tenha sido apenas infeliz na escolha das palavras. Tenho por princípio nunca duvidar, a priori, da sinceridade de ninguém.
Cara de pau consumado – Também nos dias seguintes, Ivan enviou mensagem aos amigos relatando o que aconteceu nos bastidores do chat, até como forma de prevenir-se contra eventuais represálias da direita. Alguns trechos interessantes:
“Lá chegando me deparei com a presença do advogado, junto com o Carlinhos Metralha, torturador da equipe do [delegado Sérgio] Fleury, e o próprio cabo Anselmo.”
“O cabo está mais magro, quase careca, com o nariz aquilino e o queixo pontudo para frente.”
“O cabo foi apresentado ao pessoal da Globo como sendo o Fininho, torturador e membro do Esquadrão da Morte.”
“Em vários momentos comentavam as encenações e confirmavam entre si a semelhança com o que viveram.”
“O momento mais cruel foi quando o torturador perguntou para o Anselmo sobre a encenação do massacre e este respondeu: ‘Ta bem bom’.”
“Afirmei várias vezes que o cabo e Carlinhos Metralha estavam fora da sala e o advogado não negou. Quando terminou, ele me ‘esclareceu’ que não era o cabo, mas Fininho. Respondi a ele que eu conhecia os dois Fininhos e que esse era o cabo. Ele apenas riu e saiu fora da sala.”
“O cara é mais cara de pau do que imaginávamos.”
* * *
Carlos Alberto Brilhante Ustra saiu da tumba para provocar sustos e asco nas pessoas de bem, colocando no seu site e infestando a internet com o artigo “Celso Lungaretti e a organização de Lamarca”, em que repete a receita habitual de misturar calúnias, mentiras, meias-verdades, entulho autoritário retirado dos famigerados Inquéritos Policiais-Militares e daquela documentação secreta cujo paradeiro o Governo Lula garante desconhecer, tudo isso interpretado da forma mais tendenciosa e distorcida. Ele segue, com pouca criatividade e nenhum brilhantismo, as lições de Goebbels: martelar uma falsidade mil vezes até que ela passe por verdade.
Torturador-símbolo do Brasil desde a morte do delegado Sérgio Fleury, Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.
Para se ter uma idéia do nível do samba do crioulo doido ideológico e até cronológico com que Brilhante Ustra tenta em vão me desacreditar, basta este trecho: “Foi a VPR que planejou e organizou o atentado ao Quartel do II Exército, onde morreu o soldado Kosel e outros ficaram feridos. (,,,) Ele sabia desse atentado bárbaro e, mesmo assim, continuou militando na mesma.”
Ora, seria muito difícil eu sair da VPR em junho de 1968, já que nela ingressei em abril de 1969!
Em meados de 1968 eu era apenas um secundarista que ia distribuir panfletos numa Osasco sob ocupação militar e não tinha o mínimo interesse em atentados contra quartéis. Só passei a prestar atenção na luta armada meses depois, quando o recrudescimento da ditadura começou a inviabilizar a resistência pacífica, tornando-a, cada vez mais, suicida.
Finalmente, é emblemático que Brilhante Ustra relacione esse artigo, no seu site, como de sua própria autoria, mas o distribua na Internet com uma assinatura farsesca: os administradores do site www.averdadesufocada.com
Ivan Seixas, no chat do Linha Direta, ressaltou que os veteranos da resistência à ditadura todos assumimos o que somos e o que fazemos, assinamos os textos com nossos nomes reais, não escondemos nossas fotos, lutamos de peito aberto.
Já as viúvas da ditadura e os novos integralistas atuam como fakes e anônimos na Internet, mascaram a autoria de seus escritos e comparecem a estúdios de TV sob falsa identidade, sem que possam apontar nenhuma ameaça real para justificar essas práticas ridículas... salvo o complexo de culpa pelos crimes contra a humanidade que praticaram, coonestaram e/ou defendem. Sabem que merecem punição e punem-se a si próprios com suas paranóias.
São, além de tudo, covardes.
*Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político, foi militante da VPR, uma das organizações traídas pelo cabo Anselmo e massacradas pelos comandados de Brilhante Ustra. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/