“A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu anistia política ao capitão Carlos Lamarca (...). A viúva de Lamarca, Maria Pavan Lamarca, receberá pensão relativa ao salário de general de brigada, que hoje corresponde a cerca de R$ 12 mil...”
Assim começa a nota distribuída pela assessoria de Imprensa do Ministério da Justiça na tarde do último dia 13, intitulada “Família de Lamarca é indenizada pela Comissão de Anistia”, que suscitou reações exacerbadas dos porta-vozes da extrema-direita na mídia, um festival de desinformação e parcialidade de veículos da grande imprensa e comemorações ingênuas dos defensores dos direitos humanos.
Depois, no olho do furacão, o novo presidente da Comissão de Anistia,
Paulo Abrão Pires Jr., em carta à Folha de S. Paulo, esclareceu que:
· “quem reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte
de Carlos Lamarca foi a Comissão de Mortos e Desaparecidos, vinculada à
Secretaria de Direitos Humanos, em (...) 1996”;
· “quem primeiro reconheceu a condição de anistiado político a
Lamarca, afastando a tese da deserção, foi a Justiça Federal de São
Paulo, em decisão transitada em julgado e confirmada pelo Superior
Tribunal de Justiça”;
· “quem o promoveu a coronel foi a 7ª Vara Federal de São Paulo, em 2006”;
· “a Comissão de Anistia (...) não concedeu o pedido da viúva
requerente, que solicitava a progressão para general-de-brigada”,
“manteve apenas a decisão proferida anteriormente pela Justiça,
concedendo o posto de coronel”.
Então, o que realmente fez a Comissão de Anistia? As únicas novidades foram:
· conceder a Lamarca o privilégio de que desfrutam todos os
oficiais ao passarem à reserva, de receber pensão equivalente à patente
imediatamente superior;
· considerar Maria e seus filhos César e Cláudia também
anistiados, concedendo a cada um deles uma indenização de R$ 100 mil,
em parcela única.
Como a indenização aos outros três não provocou celeuma, importando
mesmo é a decisão relativa ao ex-guerrilheiro (cuja beneficiária foi a
viúva), salta aos olhos que a imprensa gastou muito papel com algo que
já havia sido quase inteiramente definido em outras instâncias. Muito
barulho por nada, enfim.
O capcioso release do MJ não deixou de dar uma pista para os
jornalistas, no quarto parágrafo: “Lamarca já havia sido considerado
anistiado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos e pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ). O presidente da Comissão de Anistia, Paulo
Abrão, considera que agora um ciclo está fechado”.
Mas, os repórteres passaram batido, acompanhando o tom triunfalista do
abre. Com isto, fizeram exatamente o que deles esperava a Comissão de
Anistia: dar destaque exagerado à sessão de reabertura dos trabalhos
desse colegiado, a primeira sob a batuta de seu novo presidente e com o
número de conselheiros ampliado para 20.
Também se tratou da primeira sessão realizada desde a posse, como
ministro da Justiça, de Tarso Genro, que fez o pronunciamento inicial.
Então, para colocá-la sob os holofotes, nada melhor do que marcar o
julgamento de um caso polêmico. Mesmo que passando por cima dos
critérios estabelecidos pela própria Comissão de Anistia para a
priorização dos processos a serem julgados e do direito de anistiandos
que estão há anos e anos na fila, enquanto esse caso foi concluído em
apenas sete meses.
O pior é que o mesmo artifício já havia sido usado quando da
comemoração do 25º aniversário da Lei da Anistia, em 2004. Para
garantir a esse colegiado um bom quinhão do espaço que a imprensa
dedicaria à efeméride, foi, por “coincidência”, programado o julgamento
do caso de Anita Leocádia Prestes, cujo processo teve tramitação ainda
mais acelerada: três meses e meio.
A filha de Luiz Carlos Prestes se mostrou à altura do pai. Explicou à
imprensa que só pedira à Comissão de Anistia que os anos de
perseguições por ela sofridas fossem acrescentados ao tempo cumprido em
sua carreira de professora, para que ela pudesse requerer
aposentadoria; e que, como não solicitara a indenização de R$ 100 mil
que lhe concederam nem se considerava dela merecedora (já que não fora
presa ou torturada), doaria esse valor para caridade.
Cobertura tendenciosa – Pequenos truques promocionais e favorecimentos
indevidos a algumas celebridades e amigos da corte arranham a
credibilidade de um programa basicamente correto em seus fundamentos e
procedimentos. São 29 mil processos já julgados e em apenas algumas
dezenas se verificaram distorções. Mas, é tudo de que os
neo-integralistas e os saudosistas da ditadura precisam para alimentar
sua grita histérica e demagógica.
O pior é que a cobertura que a grande imprensa deu a este pífio “Caso
Lamarca” pareceu provir diretamente dos sites de extrema-direita como o
Terrorismo Nunca Mais. Caso da Folha de S. Paulo, que dedicou duas
páginas de sua edição de 14/06 a uma reportagem que já começou errando
no título: “Comissão de Anistia declara Lamarca coronel do Exército” (a
Justiça é que o fizera, no ano passado).
Os textos da sucursal de Brasília e da redação qualificam cinco vezes
Lamarca de “terrorista”, embora essa terminologia não seja pertinente
para os resistentes que pegaram em armas contra a ditadura militar.
Em carta que foi publicada apenas no Folha On-Line, eu retruquei:
“...A utilização desse termo para designar, erronea e maliciosamente,
os grupos de resistência à ditadura militar foi uma idéia dos serviços
de guerra psicológica das Forças Armadas e, hoje, é característica dos
partidários da extrema-direita.
”...protesto contra o uso inadequado dessa terminologia no caso de um
revolucionário que jamais quis provocar o caos, mas sim engajar as
massas na luta contra o grupo militar que usurpou o poder em 1964.
”Lamarca jamais poderá ser equiparado aos narodniks do século 19 que
atentavam contra o czar e seus ministros com bombas e tiros, nem aos
Bin Ladens atuais. Se a Folha pretende qualificá-lo como 'terrorista',
deveria também referir-se aos militares da ditadura como 'carrascos',
'déspotas', 'genocidas' ou 'tiranos'."
Em sua coluna dominical, o ombudsman Mário Magalhães apresentou uma
justificativa bizarra: “Carlos Marighella, um dos líderes da luta
armada, se dizia guerrilheiro e terrorista”. Como se o fato de o
Marighella não perceber as diferenças entre ele próprio e Savinkov (o
social-revolucionário russo que matou o tio do czar) determinasse a
terminologia a ser utilizada pela Folha. Seria o caso de pedirmos ao
jornal para adotar também os ideais de Marighella...
O ombudsman reconheceu, entretanto, outros erros, como o endosso à
versão oficial (depois derrubada na Justiça) de que Iara Iavelberg,
companheira de Lamarca, se suicidou. Mas, deixou passar um deslize
sintomático: a afirmação de que “o guarda civil Orlando Pinto Saraiva
foi morto com um tiro na nuca por Lamarca” quando da expropriação
simultânea de dois bancos em maio/1969.
É exatamente assim, com ênfase no “tiro na nuca”, que tal acontecimento
aparece na propaganda enganosa que a extrema-direita faz circular na
Internet. Será que os redatores da Folha preferem aproveitar as
informações encontradas nos sites de busca do que pesquisar nos
arquivos do jornal?
O que se tenta, claro, é dar a impressão de que se tratou de uma
execução à queima-roupa. Na verdade, Lamarca se encontrava a uns 40
metros de distância e, ao perceber que o policial se posicionava, com
arma em punho, diante da porta pela qual sairiam os militantes da VPR,
teve tempo apenas para dar dois disparos dificílimos, de onde estava.
Só um atirador de elite como ele conseguiria acertar o alvo, salvando a
vida de jovens secundaristas que haviam acabado de ingressar na luta
armada. Foi, aliás, a partir daí que Lamarca se tornou um personagem em
grande evidência no noticiário.
O editorial do dia seguinte, também muito infeliz, me obrigou a nova
manifestação, que, desta vez, a Folha acolheu corretamente na edição
escrita:
...discordo da distinção que a Folha propôs (...) entre os
militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custódia do
Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito a
reparação. De imediato, por não levar em conta que muitos foram
capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e
executados, sem detenção formal.
”Tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse então submetido à ditadura e ao terrorismo de Estado.
”Quem, como Lamarca, ousou confrontar esse regime totalitário, nada
mais fez do que exercer o direito de resistência à tirania. Então, não
cabe recriminá-lo por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar
agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo
foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e
mortos policiais sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e
heróis da Resistência.
Ӄ inexato, ainda, que todos os resistentes brasileiros objetivassem a
instalação de uma ditadura socialista. Então, anda certo o Estado ao
reconhecer como vítimas tantos quantos sofreram danos físicos,
psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da
normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as
atrocidades e horrores subseqüentes.”
O ombudsman, justiça seja feita, restabeleceu a verdade quanto a
outro trecho do malfadado editorial, no qual se afirmou que "a morte em
combate (...) é risco natural para quem escolhe pegar em armas".
Magalhães observou:
”Assim, a Folha bancou o relato do regime militar. Em 1996, a União
concluiu que o guerrilheiro foi assassinado quando -- desnutrido,
doente e exausto -- já não tinha condições de reagir. Não teria,
portanto, havido combate algum, mas homicídio, em vez da prisão
possível”.
“Facínora desertor”?! - Já O Estado de S. Paulo deu menos destaque ao
assunto, mas seu editorial “Prêmio ao facínora desertor”, de 16/06, foi
uma peça de propaganda de um dos lados envolvidos na polêmica e não,
como deveria, uma reflexão eqüidistante. Começando pela ênfase dada à
“deserção” de Lamarca, sem em nenhum momento apresentar o outro lado da
questão: ele se engajou, na década de 1950, no Exército de um país
democrático e se desligou, em 1969, da força repressiva de um estado
totalitário. Quem estava mais errado, Lamarca ao desertar do Exército
ou o Exército ao desertar da democracia?
Como não poderia deixar de ser, o Estadão, que reconhece e se orgulha
de haver conspirado para a derrubada do presidente João Goulart,
insiste na desmoralizada tese do contragolpe preventivo, atacando
pessoas pelo que presume que elas fariam -- e omitindo que aquilo que a
ditadura militar realmente fez foi muito pior do que quaisquer
elocubrações imaginosas.
“Carlos Lamarca, Yara Iavelberg e seus companheiros militantes da
Vanguarda Popular Revolucionária ou do MR-8 (...).queriam era derrubar
uma ditadura para implantar outra, mais cruel e liberticida”, afirma o
editorial/oráculo de um futuro que não houve. Como se isso justificasse
as execuções de Lamarca, Yara e outros militantes que foram
verdadeiramente abatidos como animais.
E, como vem se tornando uma triste rotina, o texto mais raivoso e
panfletário foi o da Veja, que acusou Lamarca até de estar “a soldo de
uma potência estrangeira”. Mas, aí já saímos do terreno jornalístico. E
nem tampando o nariz uma pessoa decente consegue acompanhar essa
revista por seus descaminhos atuais...
* Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político, foi companheiro de Carlos Lamarca na VPR.