Poucos dias antes do Natal, Lula assinou decreto publicando as diretrizes do novo Plano Nacional de Direitos Humanos onde são feitas tímidas investidas contra o status quo de impunidade dos assassinos, torturadores e seus apoiadores, imperante desde o pacto de fim da ditadura. Entre as distintas propostas seria criada uma “Comissão de Verdade”, eleita pelo Congresso incluindo diversos membros das Forças Armadas para apurar os fatos e conforme suas disposições possivelmente dar nova interpretação a Lei de Anistia. Esta lei garantiu que torturadores fossem inocentados, que suas identidades fosse ocultada, garantiu-se que não fossem responsabilizadas as instituições para as quais torturavam, seqüestravam e matavam. Os torturadores não atuavam como “agentes-livres” mas como funcionários das Forças Armadas, da Polícia, da Justiça e sob sua hierarquia de mando. Este ocultamento também serviu para manter impunes os diversos outros órgãos do Estado que contribuíram a impor este estado de exceção, como prefeituras e outros órgãos que contribuíam para ocultar os cadáveres.
A mera constituição de uma comissão de apuração dos fatos, onde os militares teriam mesmo assim elevado peso, a simples ameaça de que talvez pudesse ser examinada em maior detalhe e minúcia os detalhes sórdidos e os nomes ainda presentes (ocultados) dos torturadores e seus apoiadores civis, levou todos os grandes meios de comunicação com destaque para O Globo e o Estado de São Paulo, a cúpula militar e o ministro da Defesa Jobim (que foi ministro do STF apontado por FHC) e ainda o DEM (antigo PFL, antiga ARENA, partido apoiador do regime militar) a declarar em alto e bom som sua oposição a todo e qualquer passo pelo direito à verdade e à memória e mais ainda contra qualquer possibilidade de punição. Isto tudo porque ainda dizem que a ditadura no Brasil foi branda, ou “Ditabranda” nos termos da Folha de São Paulo. Ora, se foi uma “ditabranda” por que o medo de apurar a verdade?
Os comandantes das três armas (Marinha, Aeronáutica e Exército) e o ministro Jobim teriam pedido demissão frente ao decreto presidencial e recuado de sua posição diante de um aceno de Lula que depois de suas férias revisará o decreto e termos serão alterados para não irritá-los. O desfecho caminha para alguma solução de compromisso que transformará estes tímidos passos contra os repressores e seus apoiadores em minúsculos passos que farão prevalecer a ordem imperante desde o final dos anos 70 e se constituirá como um arremedo de uma comissão de verdade, de fato contribuindo não para o conhecimento e denúncia mas para esconder a verdade.
Sem a mobilização da classe trabalhadora a partir de seus sindicatos e centrais sindicais, dos intelectuais e advogados defensores da classe trabalhadora e do povo, dos estudantes e diversas entidades de direitos humanos ficaremos novamente aquém da verdade, da memória e da punição dos torturadores e seus apoiadores e cúmplices. A impunidade destes últimos é funcional à manutenção de uma polícia impunemente assassina de trabalhadores e pobres, ao ocultamento de bilionários e políticos que fizeram fortuna apoiando o golpe (os mais notáveis seriam os Marinho da rede Globo, e os Martins e Setúbal que administram o Itaú e chegaram a ter um governador biônico – Egídio Martins - do estado de São Paulo e Olavo Setúbal como prefeito na capital do mesmo estado). Começar a desenvolver uma campanha como esta é uma urgência e esta deveria começar por denunciar os militares e seus arqui-defensores civis lotados em cada grande jornal burguês e donos das maiores empresas brasileiras e multinacionais presentes no país.
O passado pertence ao passado?
O DEM emitiu uma declaração no dia 31/12 onde entre outras afirmações diz claramente que “fatos do passado pertencem ao passado” e a “lei da anistia é irrevogável” e que revogar dita lei só interessaria a “setores minoritários insatisfeitos com a democracia plena em que vivemos”. Com esta posição a ARENA reformada em DEM mostra sua velha cara de inimiga de qualquer conhecimento sobre o passado pois são defensores incondicionais, junto do PMDB com o ministro da defesa Jobim à frente, da impunidade dos assassinos, torturadores e seus mandantes e cúmplices pois esta impunidade é a impunidade que garante que seu passado não seja revelado. Uma impunidade que evita a denúncia do acordo que assinaram junto à aprovação da anistia para que os Romeu Tumas e outros torturadores e assassinos pudessem “se reciclar” e participar da “democracia plena”. A mídia também se opõe pois o conhecimento da verdade sobre o período traria à tona as penas sujas de sangue de órgãos como a Folha de São Paulo que ajudavam órgãos como o DOI-CODI e operação OBAN permitindo e cedendo seus veículos para transporte de agentes e de pessoas vítimas da violência deste estado de exceção.
Uma ordem que garante que mais de 11% dos mortos a tiros no Estado do Rio de Janeiro sejam mortos, nos números oficiais, pela polícia, e que nenhum destes mil casos por ano sejam sequer julgados. Que inúmeros Carandirus e Carajás sigam com os assassinos impunes. Quantos comandantes de polícia, quantos ilustres senadores e editorialistas de TV e jornais foram apoiadores senão cúmplices da ditadura? Este é o passado que pertence ao passado, ou mais uma garantia para o poder destes no presente?
O silêncio não inocente do PT e PSDB
Curiosamente os dois partidos mais influentes no país, os dois partidos dos principais candidatos à sucessão de 2010 não se pronunciaram sobre o assunto. O PT, envolvido até a medula com o processo de criação das novas diretrizes de Direitos Humanos através dos ministros Vannuchi Leme (Direitos Humanos) e Tarso Genro (Justiça) e agora envolvido também no recuo que fará Lula segue sem se pronunciar enquanto partido, preferem renegar a história dos que lutaram contra a ditadura para manter sua aliança com Paulo Maluf, Romeu Tuma entre outras ilustres figuras do regime militar.
O PSDB também calado, ainda tenta sustentar uma imagem do partido “esclarecido”, daqueles que lutaram contra a ditadura de forma “responsável”, e os principais expoentes desta imagem seriam FHC e o governador-candidat o Serra, ambos exilados durante o regime militar, mas também não se atrevem a mover um dedo que arrisque sua colaboração e apoio efetivo nos mesmos setores golpistas que ainda permeiam a política nacional tanto no campo governista como no oposicionista. Este cálculo eleitoral e de alianças dos dois principais partidos nacionais é a ponta do iceberg de como ambos, com ligeiras distinções como as posições de Vannuchi e Genro, sustentam a mesma ordem e tomam medidas idênticas para cercear o direito à verdade e memória. Tanto FHC quanto Lula promulgaram decretos tornando inacessíveis diversos documentos relativos à ditadura, sob o governo de ambos os assassinatos de sem-terra seguem impunes, sobre ambos a lei da bala foi aplicada pela polícia nos presídios, morros e favelas. Esta é a ordem, a “família brasileira” nos dizeres do editorial do Estadão. O silêncio dos repressores com as botas sobre os crânios dos oprimidos. Esta ordem precisa ser trazida abaixo, começando pela garantia do direito à memória e à verdade, com abertura de todos arquivos militares e diplomáticos do país, com a punição dos assassinos e seus apoiadores de ontem e hoje.