A matéria encaminhada abaixo é da revista VEJA quando defendia o concorrente da CUTRALE, isso em 2003. Hoje já mudou de lado, a oferta da CUTRALE foi maior.
Mostra o poder da família, curiosamente de origem siciliana - nada contra sicilianos -, mas revela o trabalho escravo, a grilagem de terras, as relações corruptas com o poder no Brasil e fora do Brasil, a depredação do meio ambiente, além das ameaças a pequenos fazendeiros para obter terras e preços vis.
A GLOBO e seu noticiário mentiroso, ou a BAND, o complexo de bandidos que chamam grande mídia está na folha de pagamento.
O campeão mundial do suco de laranja
O brasileiro José Luís Cutrale e sua família detêm 30% do mercado global de suco de laranja, quase a mesmaparticipação da Opep no negócio de petróleo
Alexandre Secco e Felipe Patury
Luiz Antonio Ribeiro |
O HERDEIRO NO COMANDO O empresário José Luís Cutrale detesta ser fotografado. Nessa foto ele foi flagrado na cerimônia de posse do Conselho de Desenvolvimento, em Brasília |
Apenas em dois momentos específicos da história, no ciclo do açúcar e no do café, o Brasil controlou amplamente o comércio global de um produto agrícola como acontece agora com o mercado mundial de laranja. De acordo com os números mais recentes, 70% do suco consumido no mundo é plantado ou industrializado por brasileiros. E esse mercado notável tem um rei. É José Luís Cutrale, detentor de uma marca fabulosa. Comandando um negócio que foi fundado por seu avô no começo do século passado e ampliado várias vezes por seu pai, José Luís administra a Sucocítrico Cutrale, empresa responsável pela venda de um de cada três copos de suco de laranja comercializados no exterior. Os dados do setor ignoram o volume da fruta vendida in natura, o chamado suco natural, inexpressivo em termos globais. Analisados os ramos de atividade com alguma expressão na pauta de exportações nacional, em nenhum outro setor da economia se encontram empresários brasileiros operando nesse patamar. Sua marca individual aproxima-se da participação coletiva dos países da Opep no mercado de petróleo, que é de 40%.
Cutrale vende suco concentrado para mais de vinte países, entre os quais os Estados Unidos, todos os da Europa e a China. Seus clientes são grandes companhias do padrão da Parmalat, da Nestlé e da Coca-Cola, dona de uma das marcas de suco de laranja mais populares nos Estados Unidos. O principal segredo do negócio consiste em adquirir fruta a um preço baixo – preço de banana, brincam os fornecedores –, esmagá-la pelo menor custo possível e vender o suco a um valor elevado. Observado por seus números, o mercado global de laranja pode não parecer tão impressionante. Movimenta "apenas" 9 bilhões de reais por ano, contra mais de 90 bilhões de reais da soja. Acontece que o setor gera uma lucratividade elevada, no momento em torno de 15% do faturamento para os melhores produtores. Para efeito de comparação, o Grupo Pão de Açúcar apresentou um lucro líquido equivalente a 2,5% do faturamento. Em anos anteriores, a taxa de retorno da Sucocítrico Cutrale já ultrapassou a casa dos 70%. A informação foi confirmada a VEJA por três pessoas: um ex-executivo do grupo Cutrale com acesso aos balanços e dois diretores de empresas concorrentes que também se beneficiaram dessa boa fase. O auge da lucratividade ocorreu nos anos 80. Naquele tempo, a Cutrale podia lucrar até 800 milhões de dólares, ou 2,4 bilhões de reais – equivalente ao lucro do Banco Itaú no ano passado.
Cutrale recusa-se a falar sobre a lucratividade da companhia. Há dois anos, a Receita Federal se interessou pela questão e teve dificuldade em analisar as contas do grupo. Fiscais de Brasília e São Paulo procuraram entender como a Cutrale ganha tanto dinheiro. Não localizaram nenhuma irregularidade. Uma autoridade da Receita relatou a VEJA que a estratégia para elevar a lucratividade do grupo passa por contabilizar uma parte dos resultados por intermédio de uma empresa sediada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. Com isso, informa a autoridade da Receita, a Cutrale conseguiria pagar menos imposto no Brasil. Trata-se de um mecanismo legal. Foi o que a Receita descobriu ao escarafunchar as contas da organização da família Cutrale.
Claudio Rossi
CONDOMÍNIO
EM FORMA DE CORAÇÃO
Alguns
diretores da Cutrale vivem neste condomínio em forma de coração,
em um terreno cercado de laranjais em Araraquara, no interior de
São Paulo
Avesso a badalações e ausente das colunas sociais, José Luís Cutrale é um rosto pouco conhecido fora do mundo dos negócios. A fotografia exibida nesta reportagem foi tirada numa rara aparição. Ela ocorreu no Palácio do Planalto durante reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado pelo presidente Lula e do qual Cutrale faz parte. No meio empresarial, no entanto, o nome de Cutrale é muito comentado. Primeiro pela riqueza que a família amealhou. Alguns empresários o classificam como o homem mais rico do campo brasileiro. Ou talvez o brasileiro mais rico de todos os campos. O banqueiro Pedro Conde, em conversas com empresários amigos, que relataram o que ouviram a VEJA, referiu-se várias vezes a Cutrale como o homem mais rico do Brasil. Disse a um interlocutor certa vez que sua fortuna acumulada equivalia a 5 bilhões de dólares – ou 15 bilhões de reais pelo câmbio do momento.
A credibilidade da estimativa feita por Pedro Conde advém do fato de o banqueiro ser amigo do rei da laranja, além de ter sido dono do BCN, comprado há alguns anos pelo Bradesco, no qual Cutrale concentrava o grosso de suas operações financeiras. Era o maior cliente do banco. Procurado por VEJA para falar sobre suas estimativas, Pedro Conde não deu retorno à reportagem. Outro grande empresário, dono de uma fortuna de 3 bilhões de reais, diz o seguinte a respeito de Cutrale: "Eu sei o que é ser rico e não me ocorre nenhum brasileiro que seja mais rico que ele". Perguntado por VEJA a respeito de sua fortuna e apresentado ao debate que se dá em torno do tema, José Luís Cutrale diz apenas: "Sobre esse assunto eu não falo".
Outra razão pela qual o nome de Cutrale freqüenta rodinhas de empresários é a atuação agressiva da empresa, principalmente em relação aos fornecedores. Os plantadores de laranja no Brasil têm poucas opções para escoar a produção. Há apenas cinco grandes compradores da fruta e Cutrale é o maior deles. Por essa razão, acabam mantendo com o rei da laranja uma relação que mistura temor e dependência. Por um lado, precisam que ele compre a produção. Por outro, assustam-se com alguns métodos adotados por Cutrale para convencê-los a negociar as laranjas por um preço mais baixo. Produtores ouvidos por VEJA afirmam que a família Cutrale costuma fazer enorme pressão para conseguir preços melhores na fruta ou mesmo adquirir fazendas. "Empregados deles nos visitavam e queriam que a gente vendesse nossa propriedade. Do contrário diziam que seríamos prejudicados na safra seguinte", afirmou um produtor que passou pela experiência de negociar com os Cutrale. Outro fazendeiro relata história semelhante, pois também foi procurado para vender sua fazenda de laranja. "Antes de eu ser abordado, minha fazenda foi sobrevoada algumas vezes por um helicóptero da companhia", diz.
Outra reclamação comum feita a VEJA por produtores diz respeito aos termos de alguns contratos de compra de laranja. Há três anos, 200 produtores acionaram em bloco a Cutrale. Acusavam-na na Justiça de descumprir um contrato pelo qual a empresa se comprometia a receber 5 milhões de caixas de laranjas. Segundo os produtores, nos dias em que eles tentaram fazer a entrega, os portões estavam fechados e a laranja começou a estragar. Os produtores quiseram ser ressarcidos pelo prejuízo, mas a Cutrale alegava que não lhes devia nada, já que não havia recebido a fruta. Os produtores receberam uma liminar para entregar o produto. Só depois disso a Cutrale aceitou a encomenda. "É difícil conseguir bons preços tratando com alguém que pode dizer não até sua laranja apodrecer", conta um produtor que por razões óbvias prefere não se identificar.
Divulgação |
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O JATO INTERCONTINENTAL |
Em vários aspectos, a indústria de suco de laranja lembra as empreiteiras. Além de ser um mercado concentrado nas mãos de poucos gigantes, os dois setores mantêm uma longa história de dependência em relação ao governo. Nos anos 70, Brasília criou uma linha de crédito especial para incentivar a exportação de produtos semi-industrializados. A idéia era usar dinheiro público para estimular a venda de manteiga de cacau, café solúvel e suco de laranja em vez de cacau, café e laranja, que são muito mais baratos e dão menos lucro. Acreditava-se que o comércio exterior brasileiro poderia dar um salto se o plano desse certo. O governo financiava a produção e as vendas para o exterior, estabelecia cotas para os exportadores e definia os preços de exportação. A operação era comandada pela Cacex, a carteira de comércio exterior do Banco do Brasil. O projeto fracassou para o cacau e para o café, mas deu certo para a laranja. Um ex-diretor do Banco do Brasil lembra que José Cutrale chegava a visitar a Cacex pelo menos uma vez por mês nos anos 70. Um dos mais poderosos diretores da Cacex, Carlos Viacava, manteve um relacionamento tão bom com a empresa que acabou contratado pela Cutrale como diretor quando saiu do governo.
Um ex-diretor do Banco do Brasil conta a VEJA que José Cutrale costumava levar a mulher, Amélia, para as reuniões de negócios em Brasília. Com Amélia ao lado, Cutrale conversava com os diretores do bancão oficial como se falasse com gerentes de agência do interior. Choramingava tanto enquanto pedia ajuda oficial que, freqüentemente, ficava com os olhos marejados, segundo relato do ex-diretor. Os pedidos mais comuns: uma cota maior na Cacex e um preço menor para exportar suco de laranja.
Há ainda uma terceira razão pela qual Cutrale desperta curiosidade no meio empresarial. Trata-se de uma certa pitada de excentricidade que a família demonstra na vida particular. Nas outras empresas, os altos executivos moram cada qual em sua casa e se reúnem no horário comercial. Na Cutrale é diferente. A companhia mandou construir um condomínio fechado em forma de coração ao lado de sua sede, no interior de São Paulo. Ali vivem alguns executivos da organização. São dez casas, no total, cercadas por um imenso laranjal. A maior é de José Cutrale, pai de José Luís, atualmente com 77 anos. O imóvel tem 844 metros quadrados e uma piscina coberta de 250 metros quadrados. As outras nove casas são de 500 metros quadrados cada uma. São ocupadas pelos empregados mais estimados por José Cutrale. Quem vive no condomínio não precisa sequer atravessar o portão para ir ao trabalho. De uns anos para cá, José Cutrale passou a morar mais tempo num apartamento na Park Avenue, endereço chique de Nova York.
O primeiro Cutrale a negociar laranja no Brasil foi Giuseppe Cutrale, que deixou os laranjais da família na Sicília no início do século passado para tentar a sorte em São Paulo. Começou comprando frutas no subúrbio do Rio de Janeiro – então a mais importante região produtora de laranja do país – e as revendia no Mercado Municipal de São Paulo. Valendo-se de contatos que mantinha com a comunidade italiana em outros países, passou a exportar fruta para o Canadá, a Alemanha e a Holanda. Foi a fase meramente comercial do grupo, na qual a família alcançou um padrão de vida de classe média e comprou uma casa num bairro operário de São Paulo. O começo da II Guerra Mundial obrigou Giuseppe a suspender as exportações, e os Cutrale pareciam ter chegado ao fim. Em 1955, o caçula dos onze filhos de Giuseppe, José Cutrale, recomeçou do zero o negócio do pai e conduziu a família para o clube dos bilionários. Na década de 60, com o lucro obtido no negócio, adquiriu laranjais e uma primeira fábrica de suco concentrado em parceria com Pedro Conde, do BCN. Fez trinta anos atrás aquilo que os especialistas pregam nas palestras sobre o futuro da agroindústria: agregou valor.
O PATRIARCA DO IMPÉRIO |
José Cutrale ainda tem poder para interferir nos negócios, mas as operações do dia-a-dia estão a cargo de seu único filho, José Luís. Aos 56 anos, José Luís Cutrale atua no ramo há 42, desde que deixou o colégio, aos 14 anos de idade. "Foi uma das decisões mais acertadas de minha vida", diz. "Na escola, só tinha meninas de nariz empinado", conta. Sua primeira missão empresarial foi, sob a supervisão do pai, tomar conta do caixa da banca de laranja que a família mantinha no Mercado Municipal, em São Paulo. E suas tarefas foram se tornando mais complexas, conforme o grupo crescia. José Luís aprendeu inglês, francês e italiano e, buscando aprimorar-se nos contatos com a clientela, decidiu matricular-se em cursos de oratória. Atualmente, para acompanhar os negócios de perto, ele cumpre um périplo mensal que passa por São Paulo, Flórida, Nova York e Amsterdã. Freqüentemente, viaja para a Ásia. Para se locomover, ele usa o próprio jato, um Falcon 900, avaliado em 100 milhões de reais. Os dois filhos, José Luís Júnior e José Henrique, já trabalham com o pai. Nenhum deles terminou a faculdade.
Gentil no trato pessoal, José Luís Cutrale recebeu VEJA em três ocasiões, num total de dezesseis horas de conversa. Nas entrevistas, chamou a atenção dos jornalistas a elegância do entrevistado. Usava ternos da grife italiana Ermenegildo Zegna (4.000 reais cada um), camisas francesas Façonnable (600 reais) e sapatos ingleses Church (a partir de 1 500 reais o par). Também não passaram despercebidos alguns comentários estranhos. No segundo e no terceiro encontros, José Luís contou aos jornalistas da revista que mantinha em seu poder gravações das entrevistas feitas pelos repórteres com amigos seus e concorrentes. E que seu diretor jurídico o havia aconselhado a processar VEJA antes da publicação da matéria. Perguntado sobre a razão do processo, não deu esclarecimentos.
O mercado de laranja é dos mais concentrados do mundo, tanto do ponto de vista geográfico quanto do ponto de vista econômico. Cerca de 90% dos laranjais se situam em apenas dois lugares: o Estado da Flórida, nos Estados Unidos, e o Estado de São Paulo, no Brasil. Essas regiões concentram milhares de plantadores que vendem a produção a apenas quinze empresas que fazem o concentrado para distribuição em escala mundial. Delas, nove são companhias nos Estados Unidos e seis no Brasil. Entre as estrangeiras, atuam no setor a Cargill, uma das maiores empresas de alimentos do planeta, e a gigante francesa Dreyfus. Entre os competidores nacionais, destaca-se a Votorantim, um dos maiores grupos empresariais do país. Até a década de 80, as fábricas americanas mantinham-se na liderança do mercado de suco, mas uma geada que arrasou os laranjais da Flórida mudou o cenário e o Brasil assumiu a frente. O grande diferencial entre São Paulo e Flórida se dá no preço. O custo de colheita e do transporte por caixa na Flórida é quase quatro vezes mais alto do que em São Paulo. A diferença se deve principalmente ao peso da mão-de-obra no preço final, que no Brasil é muito mais baixo. Os Estados Unidos compensam a desvantagem comparativa com tarifas alfandegárias elevadas. No fim dos anos 90, Cutrale conseguiu colocar seu pé em solo americano ao comprar da Coca-Cola duas fábricas de suco localizadas na Flórida. Com isso, ocupou uma posição estratégica. Ele produz e lucra no Brasil da mão-de-obra barata e nos Estados Unidos da alíquota alfandegária elevada.
A laranja é a segunda principal fonte de riquezas da Flórida e o sexto produto mais importante da pauta de exportações agrícolas do Brasil. Esse choque de interesses coloca fazendeiros americanos e brasileiros num permanente estado de guerra, que envolve disputas diplomáticas e um pesado jogo de acusações. O deputado republicano pelo Estado da Flórida, Mark Foley, tem como plataforma combater os produtores brasileiros de suco. Ele defende que o governo americano use satélites militares para espionar os laranjais no Brasil. Num artigo recente, Andy LaVigne, diretor da associação dos produtores de suco de laranja da Flórida, escreveu que os brasileiros "só são competitivos porque se beneficiaram de vantagens trazidas de um passado de subsídios e dumping, ausência de proteção ambiental, legislação ineficiente contra trabalho infantil, desvalorizações cambiais freqüentes, oligopólio e manipulação dos preços futuros de concentrado".
A compra da fábrica da Coca-Cola por Cutrale tornou o ambiente ainda mais tenso. Há três anos, um funcionário da Cutrale na Flórida morreu em um acidente elétrico. O sindicato alegou falhas na segurança e organizou uma greve que durou seis semanas. Um ano depois, a demissão de um funcionário com mais de trinta anos de casa gerou nova onda de protestos. No terceiro episódio da disputa entre os empregados e a Cutrale, o sindicato denunciou a dispensa de 140 dos 200 funcionários em represália aos protestos. Há alguns anos, a empresa tentou comprar uma fazenda para plantar laranja na Flórida. O departamento de meio ambiente do Estado barrou o projeto alegando que na área vive um pássaro raro. O negócio foi desfeito e meses depois a fazenda foi vendida a um rancheiro texano. Cutrale conta que para contornar mais dissabores desse tipo ele tenta manter uma boa relação com poderosos locais, como o governador da Flórida, Jeb Bush, irmão do presidente George W. Bush. Jeb Bush já o visitou no Brasil e escreveu uma carta de boas-vindas para José Luís quando a Cutrale comprou suas fábricas na Flórida. No texto, Jeb Bush agradece a Cutrale por criar empregos em seu Estado. A carta acabou emoldurada e, agora, decora seu escritório.
Manter a proximidade do poder é um traço da família Cutrale. Segundo conta José Luís, ele e seu pai foram recebidos por quase todos os presidentes da República nos últimos trinta anos. O único que não lhes deu atenção foi Fernando Henrique Cardoso. José Luís Cutrale recorda-se de uma cena constrangedora que protagonizou em Brasília, quando foi encontrar-se com FHC, então ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco. Depois de tomarem um chá-de-cadeira, Fernando Henrique recebeu ele e seu pai, mas interrompeu a reunião para ir ao Palácio do Planalto e não apareceu mais. "Ele falou que ia voltar, mas sumiu", disse José Luís a VEJA. Os Cutrale foram apresentados ao poder em 1972, quando a empresa foi escolhida a exportadora do ano. José Luís Cutrale acompanhou o pai na solenidade de premiação. Coube ao presidente Emílio Médici entregar o prêmio, em cerimônia realizada no Palácio da Guanabara, no Rio. "Eu e meu pai estávamos tremendo. Foi a primeira vez que entramos num palácio." Médici convidou os Cutrale para conversar depois da solenidade. No meio da conversa, pediu um cigarro a José Luís. Ele lembra que sentiu um calafrio. Tinha um maço de Minister guardado no bolso da calça, já meio amassado. Entregou um cigarro torto ao presidente da República, "igual a cigarro de bêbado". "O presidente fumou aquele cigarro torto, virado para baixo, e depois pediu outro. Era uma moça" (de delicadeza).
Cutrale soube cultivar um bom relacionamento no Palácio do Planalto. Gostava muito de José Sarney, mas admirava mesmo Fernando Collor, cuja campanha financiou. Ainda hoje o considera o político mais preparado para dirigir o país, "se não fossem aqueles problemas". O encantamento por Collor o ajudou a enfrentar a crise mais difícil que a família já atravessou. Em 1990, um tio de José Luís foi seqüestrado e os bandidos pediam 5 milhões de dólares para libertá-lo. O empresário ligou para o banqueiro Pedro Conde e pediu o dinheiro. Conde explicou que o Banco Central proibira os bancos de manter uma quantia expressiva em dólares no caixa. O governo havia decretado o confisco do dinheiro depositado nos bancos. Cutrale telefonou para o presidente Collor e explicou a situação. No dia seguinte, contou José Luís a VEJA, dois carros-fortes pararam em frente da casa de seu pai, em São Paulo, com o dinheiro do resgate. "Era tanto dinheiro que foram necessárias duas malas de viagem Samsonite para acomodar tudo", conta o empresário. Incumbido de negociar com os seqüestradores, Cutrale acabou libertando o tio em troca de 1,2 milhão de dólares.
No governo Lula, Cutrale conta que mantém boas relações com o presidente. Elas se tornaram amistosas depois que, durante a campanha, Lula o tranqüilizou a respeito do que faria com a economia em caso de vitória. "Ele me disse que não ia mexer com quem estava produzindo e que o que ia fazer era colocar o governo para ajudar os pobres. Acreditei." Num dos encontros com a reportagem de VEJA, José Luís sacou da pasta um punhado de charutos cubanos da marca Cohiba e Montecristo para dizer em seguida: "Esses eu estou levando para o Lula".
A grande preocupação profissional da Cutrale é a Citrosuco, fundada pelo empresário alemão Carl Fischer, já falecido. A Citrosuco é quase do tamanho da Cutrale e foi responsável por alguns dos grandes lances no mercado mundial de laranja. Ela foi pioneira na assinatura de contratos com fábricas de concentrado de laranja nos Estados Unidos e também a primeira companhia a operar terminais portuários e navios especiais para o transporte de suco de laranja. Entrou no mercado seis anos antes da Cutrale, tinha capital e empregava os melhores técnicos do mundo. Por vinte anos a Cutrale sempre esteve atrás da Citrosuco. A virada se deu depois que Carl Fischer morreu, em 1988. Nos últimos anos a Cutrale fez algumas jogadas de grande ousadia. Enquanto o concorrente lutava para abrir mercados no exterior, a Cutrale apostou que poderia ganhar o jogo intensificando a compra de laranjais. Segundo os especialistas, foi uma estratégia correta. O custo da caixa produzida em pomar próprio equivale a um terço do preço de mercado. Cerca de 40% do suco que a Cutrale produz é feito com laranja de seus pomares. A Citrosuco fabrica perto de 25% de suco com fruta dos próprios pomares, o que afeta seu lucro. Há dez anos, a empresa assumiu a liderança do mercado pela primeira vez e teme perdê-la. A diferença é muito pequena.
Em 2000, a Citrosuco fez uma investida pesada para retomar a liderança. Ricardo Ermírio de Moraes casou-se com uma das herdeiras da Citrosuco e passou a dirigir a empresa. Ele já havia trabalhado no negócio de laranja na Votorantim, empresa de sua família. À frente da Citrosuco, Ricardo moveu uma guerra de preços contra a Cutrale. A base de seu plano era conquistar plantadores de laranja que mantinham contrato com a Cutrale pagando a eles preços melhores pelas caixas colhidas. Frederico Oscar Hotz, presidente de uma cooperativa de produtores de laranja, confirma o abalo no mercado com a entrada de Ricardo Ermírio na Citrosuco. "Pela primeira vez existiu disputa de preço entre os fabricantes de suco", diz Hotz. A ação da Citrosuco durou cerca de dois anos, mas não funcionou. Os custos subiram, a lucratividade caiu e a liderança da Cutrale não foi abalada. O ataque parou depois que a Citrosuco perdeu 1,5 bilhão de reais com o confronto. O valor do prejuízo foi passado a VEJA por analistas de mercado que tiveram acesso aos números. Ricardo foi afastado. Seu sucessor, Norberto Farina, recebeu orientação da família Fischer para fazer as pazes com o concorrente.
O Brasil rural possui uma presença significativa no comércio internacional. É o segundo maior exportador mundial de soja, segundo na produção de carne e o primeiro nas culturas de cana-de-açúcar e café. Considerados em bloco, os produtos de origem agropecuária representam 27% das exportações e vão gerar neste ano um superávit comercial superior a 20 bilhões de dólares. Quando observados em separado, o Brasil também se destaca em diversas culturas. Além do rei da laranja, o rei da soja é um brasileiro. Chama-se Blairo Maggi, é paranaense e se elegeu governador pelo Estado de Mato Grosso no ano passado. Colhendo o equivalente a 1,3 bilhão de reais em soja por ano, com produtividade até 30% superior à média americana, detém o posto de maior plantador individual do grão. É também brasileiro o rei do açúcar, Rubens Ometto, de tradicional família usineira paulista, cujo negócio movimenta mais de 2 bilhões de reais por ano. Seu grupo possui o título de maior produtor individual de açúcar do mundo. São dois entre muitos casos de sucesso que o campo tem produzido (e continua a produzir) no processo de retomada de crescimento econômico registrado dos últimos anos. Se a agricultura continuar a progredir, novos reis certamente surgirão.
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