Nas últimas horas do dia 3 de junho, o Senado deu um passo decisivo para a legalização da grilagem de 175 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia. A Medida Provisória 458, contra a qual haviam se levantado movimentos camponeses e estudiosos da questão agrária, só precisa agora ser sancionada por seu próprio autor (a gerência Luiz Inácio) para tornar-se lei.
Sua conversão significará a entrega de um terço da
chamada Amazônia Legal (que abrange toda a região norte e uma parte do
Maranhão) ao que o geógrafo Ariovaldo Umbelino, um dos maiores críticos
do projeto, denomina, com acerto, de "agrobanditismo".
Professor titular de Geografia Agrária da USP, Umbelino fez, antes da
votação da MP 458, graves denúncias sobre seu caráter e suas
consequências. Conforme explicou à Radioagência NP e ao site
Correio da Cidadania, ela atende a dois grupos: de um lado,
latifundiários e monopólios agroindustriais que se apossaram ou
pretendem se apossar de terras públicas recorrendo ao expediente da
grilagem; de outro, funcionários corruptos do Incra que "venderam"
essas terras — isto é, incentivaram sua ocupação ilegal cobrando
propina por sua regularização futura.
"Os pedidos [de legalização] já estão todos preparados, inclusive com
conhecimento do INCRA, como pode ser visto em seus protocolos de
Santarém, Marabá, Belém, Cuiabá, Porto Velho, Manaus e Rio Branco. O
órgão já tem os nomes desses grileiros nos protocolos" — denuncia.
Quem perde
Mas o que diz, exatamente, a MP 458? Para entendê-la, é preciso
conhecer um pouco daquilo que ela destrói: a disciplina jurídica da
ocupação de terras públicas.
Como todo bem público, as
terras pertencentes ao Estado — caso da maior parte da Amazônia Legal —
não podiam, em regra, ser concedidas sem licitação. Sua entrega para
exploração estava submetida a diversos critérios. Eram exceção, até
2004, apenas as glebas de até 100 hectares — o que, na Amazônia, é uma
área relativamente pequena. Naquele ano, o governo Lula ampliou esse
limite para 500 hectares e, em 2008, para 1.500, facilitando, assim, a
entrega de terras aos monopólios agroindustriais. O que a MP 458 faz é
legalizar a situação de glebas que haviam sido ocupadas ilegalmente
antes mesmo das alterações de 2004 e 2008.
O governo argumenta tratar-se de terras devolutas e diz que a
legalização beneficiará pequenos posseiros e famílias que receberam
lotes no âmbito dos projetos de colonização da Amazônia do regime de
64. Umbelino e o agrônomo Candido Neto da Cunha, de Santarém, diretor
da Associação dos Servidores da Reforma Agrária (Assera) no oeste do
Pará, desmontam esses dois pretextos. "Terra devoluta é terra pública
não-discriminada, e não terra de ninguém" — diz o geógrafo em
entrevista ao site
Repórter Brasil. "Os pequenos posseiros, que pela legislação atual já
têm este direito constitucional da legitimação de suas posses, ocupam
apenas 20% dessas terras. E mais, nos primeiros seis anos deste
governo, o INCRA muito pouco fez para regularizar essas posses" —
denuncia à Radioagência NP.
"Durante a Ditadura Militar os lotes de colonização eram de, no máximo,
100 hectares, e acima disto só com licitação. Quem possui grandes áreas
na região ou já possuía os títulos (sesmarias ou títulos estaduais) ou
são grileiros que invadiram terras públicas, ao arrepio da lei,
desmataram, expulsaram posseiros, indígenas ou mesmo colonos, ou
compraram ilegalmente 'posses' de outros" — completa o agrônomo em seu
blog (www.candidoneto.blogspot.com).
Quem perde com a aprovação da MP 458, portanto, é o povo brasileiro —
que tem seu patrimônio rematado sem nenhum controle e a troco de nada —
e, especialmente, os camponeses pobres sem terra, já que as terras
públicas (devolutas ou não) destinam-se constitucionalmente à falida
"reforma agrária". Legalizar sua ocupação por grandes proprietários
significa, assim, subtraí-las oficialmente a essa destinação, coisa que
já vinha sendo feita de fato.
... e quem ganha
O maior beneficiário dessa medida, obviamente, é o latifúndio —
seja o de velho, seja o de novo tipo, conhecido pelo nome de
agronegócio e declarado pelo presidente do BNDES, Luciano Coutinho,
como um dos quatro grandes vetores do projeto de desenvolvimento do
governo Lula na reunião anual do Fórum Nacional, em maio.
Os interesses do agronegócio são contemplados não apenas pela
legalização da posse de terras griladas, mas também — e principalmente
— pela burla que a MP 458 possibilita ao já frágil controle a que a
Constituição submete a concentração de terras na Amazônia. De acordo
com a MP, caso alguém tenha ocupado mais de 1,5 mil hectares de terras
públicas, a posse da área até esse limite será legalizada e o excedente
será licitado até o total de 2,5 mil hectares (limite máximo previsto
na Constituição para a venda de terras públicas sem autorização do
Congresso). "Que processo licitatório é esse onde o grileiro tem
preferência pela compra da terra?" — questiona Umbelino na entrevista
ao Correio da Cidadania. Além disso, o pagamento é parcelado em 20
anos, com 3 de carência.
Mais: por meio da chamada "ocupação indireta", definida no art. 2º da
MP como "aquela exercida somente por interposta pessoa", legaliza-se,
além da grilagem, o uso de laranjas para ultrapassar o limite de 2,5
mil hectares, como também denuncia o geógrafo.
Nessa empreitada, o latifúndio e os monopólios agroindustriais têm como
sócio, além dos já mencionados funcionários corruptos do INCRA, o
ministro da reforma agrária, Guilherme Cassel, que assina a MP e a quem
o órgão está subordinado. Cassel integra a autodenominada Democracia
Socialista, mesma tendência interna do PT a que pertence a governadora
do Pará, Ana Júlia Carepa. "É óbvio que, provavelmente, pensando na
eleição do próximo ano, quando, sobretudo no Pará, onde está parte
significativa dessas terras, serão objetos de negociação no conjunto
dos trunfos para ser usado nas eleições" — ataca Umbelino em sua fala à
Radioagência NP.