Mulheres - América Latina: Participação política desde o berço

Caracas, 04/05/2009 – “Desde o berço se deve aprender que as mulheres têm direito à participação política de forma exatamente igual à dos homens’, afirmou à IPS Gladys Acosta, chefe do Fundo das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), para a América Latina e o Caribe, para quem a política é a chave que abre todas as portas para a igualdade. Advogada e socióloga, a peruana Gladys Acosta é uma ativista pelos direitos da mulher desde a década de 70 e, até assumir, no final de 2008, seu cargo no Unifem foi durante 10 anos representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância em diferentes países.


Acosta acredita que o acesso à educação é o maior êxito das mulheres latino-americanas, mas que fica turvado pela desigualdade no trabalho. Sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e os compromissos assumidos pela região para 2015,m o pior é alta mortalidade materna, enquanto na erradicação da mortalidade infantil foram dados passos gigantescos, disse Acosta. Em entrevista à IPS, durante visita à Venezuela, analisou também o avanço no terceiro objetivo, de igualdade de gênero e poder das mulheres.

IPS - Desde os anos 70, a comunidade internacional começou a enfrentar a discriminação contra a mulher. O que se aprendeu nessas três décadas?

Gladys Acosta - Depois de 30 anos temos claro como as coisas caminham, a análise deve continuar, mas o que se sabe é suficiente para agir. E o que se sabe é que são necessárias ações sistêmicas, porque a discriminação é sistêmica. As ações isoladas não rompem o fenômeno da discriminação, não serve, por exemplo, focar apenas na questão da violência contra a mulher e não cuidar de sua inserção na educação, de seu acesso aos serviços de saúde, na política, no sucesso dos padrões trabalhistas que lhe correspondem. A discriminação tem inércia própria, o que ocorre se nada é efeito é a discriminação.

IPS - Na América Latina, em que as mulheres mais avançaram?

Gladys Acosta - Indiscutivelmente na educação. A onda de democracia que pôs fim à ditaduras militares na América Latina favoreceu uma maciça inserção das mulheres na educação. E mais, já estamos perto de ter mais mulheres do que homens no sistema educacional. O problema agora é de trabalho. As mulheres ainda recebem muito aquém de suas capacidades e contribuições.

Prevalece a idéia de que o salário da mulher é complementar ao do homem, quando a realidade mostra que as chefes de família já são 30% na região e, além disso, há chefes de família que têm marido. As mulheres precisam ser consideradas uma força de trabalho igual ao homem no todo, desmontando barreiras invisíveis e visíveis. Mas, neste e em outros campos a realidade é distorcida por estereótipos e, portanto, são aplicadas soluções inadequadas.

IPS - Um exemplo dessa percepção anacrônica no campo trabalhista?

Gladys Acosta - A migração. Continua sendo vista como masculina, quando está feminilizada e com as mulheres em torno de 50% do total. E é uma migração de alta qualificação. Não é verdade que seja de empregadas domésticas, por exemplo, o que ocorre é que no país de destino muitas vezes fazem um trabalho abaixo de sua qualificação. O resultado é que os países perdem força de trabalho com instrução, que poderia dar uma grande contribuição, mas que acaba em outro país executando um trabalho mais remunerado, mas de baixa qualificação.

Perde-se o investimento feito nessa pessoa, e é um processo particular de gênero. Naturalmente, também há fuga de talentos masculinos, mas no caso das mulheres estas acabam de chegar ao sistema educacional e trabalhista e já partem. No Unifem avaliamos que o fenômeno da migração feminina tem a ver com uma falta de prestação de contas na política trabalhista porque, se fosse uma política de retenção das mulheres com instrução, estas não iriam embora.

IPS - Continua havendo muitas falhas nas políticas dos Estados latino-americanos a favor das mulheres?

Gladys Acosta - Há um grande número de vazios, porque não se faz o necessário, não se dá seguimento ao que se deve e as autoridades não assumem a responsabilidade para que se cumpra a lei. A política pública continua sendo assistencial e não social, e isso é muito claro em momentos de crise como o atual. É preciso fortalecer a saúde, a educação ou o trabalho e a política assistencial deve ser para segmentos e momentos muito particulares. Mas se há uma visão da mulher com setor vulnerável, a política será errônea.

IPS - A senhora insiste no papel retroalimentador da ampliação dos direitos femininos.

Gladys Acosta
- Naturalmente, porque impulsionar os direitos das mulheres tem um efeito transversal positivo sobre todos os demais direitos e isso ocorre também com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Não é possível defender os direitos da infância sem defender os da mulher, porque uma mulher sem consciência clara de seus direitos não irá defender bem os de seus filhos. Em desnutrição infantil fica claríssimo, as mulheres com mais informação e maior nível de instrução sabem melhor o que devem comer. As mais educadas cuidam melhor de seus filhos.

Na mortalidade materna, se cruzarmos o nível de instrução com este indicador fica claro que morrem mais as que são menos informadas. Há uma correlação de fenômenos que provoca o avanço das mulheres, o maior cuidados com meninas e as adolescentes, sua maior formação e informação para tomar decisões em suas vidas, tudo isso se reflete em uma política muito maior. A política é um pouco cega. É necessária uma visão melhor do Estado sobre o que ocorre com a população feminina, que é uma força superdinâmica.

IPS - A participação política feminina poder corrigir essa miopia?

Gladys Acosta - A participação política é um tema central. Desde a escola, ou melhor, desde o berço, se deve aprender que as mulheres têm direito à participação política de forma exatamente igual aos homens. E elas têm de ter claro que a participação política é uma chave, a chave da voz, é uma chave da cidadania. Deve-se fazer várias coisas ao mesmo tempo. É preciso fazer as leis sobre violência, porque esse é realmente um obstáculo enorme para a participação política,para o desenvolvimento e para a pessoa humana.

Mas, ao mesmo tempo, deve-se avançar no sentido de as mulheres terem mais voz na política, porque é onde são tomadas as decisões, e tem de ser em todos os níveis do Estado, no Executivo, Judiciário, onde são feitas as regras eleitorais, por todo lado. É um grupo muito pequeno que tem acesso ao poder político. A mulher já conta com uma massa crítica suficiente para acelerar seus direitos e o maior acelerador é a política. Sua presença no poder político é essencial.

IPS - As leis de cotas são o instrumento adequado para forçar essa o presença?

Gladys Acosta
- A lei de cotas é uma ação afirmativa, temporal, e aos homens ficam tão nervosos com as cotas é preciso dizer: no dia em que se alcançar a igualdade, as cotas acabarão. O problema maior é que o avanço é muito lento. Neste ritmo, serão necessários 40 anos para chegar à zona de igualdade. Deve-se buscar aceleradores e as leis de cotas são um deles.

IPS - Qual o papel dos homens na conquista da igualdade de gênero?

Gladys Acosta - Fundamental. É necessária a participação dos homens para desmontar a desigualdade de gênero, tanto em nível de grandes políticas, quanto na sociedade e no lar. É preciso modificar os padrões e trocar o chip. Uma mulher e seu companheiro, ambos trabalhando e ambos educados, não há nenhum motivo para que seja ela a assumir sozinha as tarefas de casa. O homem colabora, não compartilha, e isso é pior quanto mais se desce na escala social. Mulheres em setores populares devem garantir a comida e prepará-la, cuidar da roupa, dos filhos e da casa, e trazer dinheiro. O desgaste é enorme para ela, mais ainda quando se deixou para as famílias tarefas que são próprias do Estado.

IPS - Sobre as metas do milênio, em particular sobre igualdade de gênero, em que a região está melhor e pior?

Gladys Acosta - Há países que atingirão metas importantes. Mas uma que está muito difícil de ser atingida é a da mortalidade materna. A média na região é de 130 mulheres mortas para cada 100 mil nascidos vivos. Mas na Europa e nos países desenvolvidos é de nove. É uma brecha enorme. A meta para 2015 é de reduções drásticas, mas muitas nações não conseguirão porque se a discriminação tem inércia, a maternidade tem uma tremenda inércia. A razão é que se baseia no preconceito. A maternidade é vista como um fato natural e as mortes no parto, por serem tantas, também são vistas da mesma forma.

Deve-se acompanhar bem de perto o quer vai ocorrer com a mortalidade materna, porque afeta muitos países, como a Guatemala, onde 70% dos partos acontecem em casa, mas também outros, como a Argentina, onde 95% dos partos são feitos no sistema de saúde. É preciso priorizar a política pública materna. Bolívia e Equador dão exemplo ao incorporarem o seguro maternidade gratuito. Basta estar grávida para ser atendida. Assim deve ser. A atenção à maternidade não pode depender de pagamento. Se avançou mais em mortalidade infantil, que não foi totalmente vencida, mas os passos são gigantescos e se investe muito mais nisso.

IPS - A mídia tradicional reflete o crescente papel de protagonistas femininas na sociedade?

Gladys Acosta - Não. A mídia de massa não fez as mudanças que deveria, sua agenda está muito articulada no comercial e com muitos estereótipos. Um exemplo, tudo o que diz respeito à violência contra e mulher e crônica policial. Deve-se descobrir que há uma potencialidade em um mercado de mulheres pensantes que exigem outra oferta. Até a moda foi mais rápida em fazer sua a idéia de liberação das mulheres e as fez mais livres em suas roupas. A mídia, porém, continua atada a estereótipos. Não veem a mulher a não ser com papéis muito específicos e de vítima ou de malvada. IPS/Envolverde


(Envolverde/IPS)
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