Entrevista: Celso Lungaretti

Jornalista, escritor, ex-militante da VPR e ex-preso político

A família de Celso Lungaretti não era politizada em 1964, quando o golpe militar do dia 31 de março derrubou o governo do então presidente João Goulart. ‘‘Os acontecimentos políticos ainda pareciam distantes da minha realidade’’, lembra o jornalista, escritor e ex-preso político que tinha 13 anos na época.

Três anos depois, seguindo ‘‘o sentimento difuso de contestação da autoridade’’ que havia na juventude brasileira e de outros países, Lungaretti ingressou no movimento estudantil. ‘‘O rito de passagem passou a ser a luta política’’.

Estava com 18 anos, quando o marechal Arthur da Costa e Silva assinou o Ato Institucional (AI) nº 5, em 13 de dezembro de 1968, e o País perdeu suas garantias constitucionais. O Congresso foi fechado e direitos civis e políticos ficaram suspensos.

O jovem Lungaretti, então, assumiu o codinome de Júlio e tornou-se o mais novo entre os dirigentes de uma organização de esquerda que defendia o combate à ditadura pela luta armada, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Ao lado de Carlos Lamarca, atuou em um campo de treinamento de guerrilha no Vale do Ribeira em 1970. Ex-capitão do Exército e exímio atirador, Lamarca havia desertado do 4º Regimento de Infantaria, em Quitaúna (SP), e se tornara um dos maiores inimigos do regime.

Logo depois, Lungaretti foi preso. Permaneceu incomunicável e sob sessões constantes de torturas. Em consequência, teve um tímpano perfurado e abalo mental. Acabou revelando a localização da área de treinamento desativada no Vale do Ribeira. O Exército, no entanto, descobriu o campo ativo e cercou Lamarca, que conseguiu escapar ileso. A partir daí, Lungaretti foi classificado como delator pela VPR.

Soube disso porque seu nome não foi incluído na lista de presos políticos que deveriam ser libertados em troca do cônsul da Alemanha, Ludwig Von Holleben, sequestrado pela organização.

No limite de suas forças, Lungaretti cedeu à pressão e renunciou a seus ideais. Uma carta e sua foto foram publicadas em jornais. Diante de câmeras de TV, foi forçado a se arrepender.

Por 34 anos, se viu estigmatizado. Só em 2004, suas versões dos fatos foram aceitas pela Comissão Nacional de Anistia. No ano seguinte, publicou o livro Náufrago da Utopia — Vencer ou Morrer na Guerrilha. Aos 18 anos, pela Geração Editorial.

Em entrevista a A Tribuna, Celso Lungaretti, hoje com 57 anos, fala sobre sua experiência na VPR, sobre tortura e as consequências da ditadura para o País. Também critica a posição do jornalista Elio Gaspari sobre o episódio da explosão de uma bomba no consulado dos Estados Unidos, em São Paulo, na noite de 20 de março de 1968.

O que o levou, aos 18 anos, a aderir à luta armada para combater a ditadura?
Comecei a fazer movimento estudantil em 1967. Em seu processo de afirmação, os jovens já não se chocavam mais com os pais repressores, e sim com o ‘‘sistema’’. Em 1968, tornei-me dirigente do movimento secundarista em toda a Zona Leste de São Paulo. Quando o acirramento da repressão tornou praticamente suicida o trabalho de massas, só os oito líderes estávamos dispostos a seguir em frente, correndo todos os riscos em nome dos ideais de liberdade e justiça social.

Nem todas as organizações de esquerda pegaram em armas. Como avalia essa opção?
Havia uma ditadura feroz, que respondeu à resistência desarmada com torturas e assassinatos, além de deixar os paramilitares de direita agirem à vontade. Depois da assinatura do AI-5, mergulhando o Brasil num terrorismo de estado que chegava a lembrar o nazi-fascismo, as opções passaram a ser: 1) não atuar politicamente, à espera de dias melhores; 2) atuar de forma anódina, sem incomodar realmente a ditadura; 3) atuar de forma consistente no seio das massas e ser logo preso e barbarizado; e 4) atuar na clandestinidade, pela via armada, o que permitia, pelo menos, permanecer algum tempo na luta e devolver golpes do inimigo, causando-lhe problemas. Então, a minha avaliação é de que agimos como verdadeiros cidadãos e pagamos um preço terrível por isso.

Seu livro aborda o treino de guerrilha junto com Lamarca no Vale do Ribeira. Por que o sr. foi acusado de delação?
Fiz parte da equipe precursora que foi implantar uma escola de guerrilha na região de Registro. O sítio que adquirimos tinha muitos inconvenientes. Passados dois meses, resolvemos abandonar essa área. Fui preso depois de quatro meses e, após ser torturado um dia inteiro, revelei a localização daquela área de treinamento abandonada, por saber que de nada serviria para a repressão. Realmente, os militares mandaram duas equipes para investigar e elas voltaram de mãos abanando. Aí houve novas prisões no Rio de Janeiro e a área ativa foi descoberta. Lamarca liderou a fuga de um pequeno grupo de guerrilheiros, que logrou escapar de militares treinados e melhor equipados. Logo em seguida, houve o sequestro do embaixador alemão e eu deixei de ser incluído na chamada lista de troca. Pelos critérios da organização, eu tinha direito de ser libertado. Adivinhei que estavam me atribuindo erroneamente a responsabilidade pela queda da área de treinamento. Demorei 34 anos para conseguir provar, a partir de relatórios secretos militares, que a delação da área ativa partiu de outra pessoa, cujo nome, por questão de princípio, prefiro omitir. Quando o historiador Jacob Gorender avalizou minha versão, admitindo em seu próprio livro Combate nas Trevas que estava errado a meu respeito, começou o processo da minha reabilitação.

O sr. foi obrigado a renunciar a seus ideais. Qual foi o teor da declaração?
Foram mais de dois meses de incomunicabilidade, embora mesmo as leis de exceção daquele tempo só permitissem um mês. Cheguei no limite das minhas forças. Depois de ter o tímpano do ouvido direito estourado e sob ameaça de morte, acabei participando de uma farsa de arrependimento, gravada no estúdio da TV Globo no Jardim Botânico (RJ) em plena madrugada e levada ao ar em cadeia nacional. O objetivo do Serviço de Inteligência do Exército foi reforçar o impacto obtido com a rendição do jovem Massafumi Yoshinaga, que renegou os ideais revolucionários (e depois se suicidou). Quanto às declarações que eu dei, só uma vinha do fundo da minha alma: o conselho a outros jovens para que não entrassem na luta naquele momento, pois já estava perdida e eles se sacrificariam à toa.

Seu livro é uma forma de esclarecer esses episódios históricos?

Quando escrevi, eles já estavam esclarecidos. O Gorender me inocentara no episódio de Registro e o relator do meu processo na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (Márcio Gontijo, ex-presidente da Seção Brasileira da Anistia Internacional) me qualificara de um dos pleiteantes mais atingidos em seus direitos pelo arbítrio ditatorial. Então, pude fazer o livro com um foco mais nobre: mostrar os riscos a que estão sujeitos os jovens quando participam de uma guerra de adultos. Quis fazer justiça ao sacrifício dos companheiros e amigos que entraram comigo na guerrilha.

Que erros a esquerda cometeu no combate à ditadura?

Independentemente de erros, o desfecho acabou sendo o mesmo nos vários países latino-americanos em que se implantaram ditaduras militares durante as décadas de 1960 e 1970. Então, eu diria que eram lutas impossíveis de serem vencidas — e, ainda assim, teria sido indigno nem sequer havê-las travado. No caso específico do Brasil, os grupos guerrilheiros superestimaram a insatisfação popular perceptível em 1968 e 1969. Sendo o Brasil um país pobre, bastou os Estados Unidos aumentarem substancialmente seus investimentos para a economia decolar e o regime passar a ser apoiado, principalmente pela classe média.

Hoje, a população está ciente do que ocorreu no País de 1964 a 1985?
Não. Boa parte dos jovens não quer nem saber do passado, como se o mundo só tivesse começado a existir no dia em que eles nasceram. Há também aqueles cidadãos idosos para quem a ditadura está associada às lembranças de dias melhores. Como naquele tempo a imprensa era rigidamente censurada, têm a falsa impressão de que havia menos corrupção e criminalidade. Então, ajudam a espalhar uma visão deturpada dos anos de chumbo, que vem ao encontro da propaganda atordoante de uma extrema-direita golpista que, encastelada em sites neo-integralistas, sonha com um novo 1964.

No caso do atentado ao consulado dos Estados Unidos em 1968, no qual o santista Orlando Lovecchio perdeu parte de uma perna, que erros estão sendo divulgados atualmente?
Este é um ótimo exemplo da demagogia inspirada pela direita. A Comissão de Anistia recomendou o pagamento de uma pensão a Diógenes de Carvalho, por ter sido preso e torturado pela ditadura. Cabe ao ministro da Justiça decidir se aceita ou não tal recomendação. Aí o jornalista Elio Gaspari colocou em sua coluna dominical, publicada em vários jornais, que Diógenes receberia duas vezes mais do que a vítima de um atentado por ele cometido, Orlando Lovecchio. Gaspari omitiu: que a pensão de Lovecchio foi concedida pelo Congresso Nacional, cujos procedimentos são diferentes dos do Ministério da Justiça, daí a impropriedade de quaisquer comparações; e que não havia evidências para acusar-se Diógenes de ser autor do atentado, além dos inquéritos policiais-militares da ditadura, contaminados pela prática generalizada da tortura e que, juridicamente, não valem absolutamente nada hoje em dia. Daí minha indignação contra Gaspari, que abusou de seu espaço na mídia para condenar Diógenes e aplicar-lhe a pena de execração pública, fazendo as vezes de juiz e carrasco.

Quem realmente participou?
Gaspari disse que a ação foi da VPR e acusou Diógenes, Dulce Maia, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre ‘‘e uma pessoa que não foi identificada’’. Logo depois, a Folha (de S. Paulo) e o próprio Gaspari admitiram que Dulce Maia era inocente dessa acusação e lhe pediram desculpas públicas. Aí veio o Sérgio Ferro e esclareceu que o atentado havia sido cometido por outra organização (a ALN), tendo como autores ele próprio, Lefèvre e um tal de Marquinhos, que logo foi morto pela repressão e cujo nome ele não ficou sabendo. Ou seja, Gaspari deu cinco chutes e errou três, por confiar no entulho autoritário. Como a participação do Diógenes não foi provada, sua matéria inteira desabou.

Em um artigo, o sr. escreveu que o arquiteto Sérgio Ferro foi processado por Lovecchio, mas ganhou a ação, porque laudos médicos atestavam que o ferimento da perna dele se complicou por culpa dos agentes do Deops. Como se deu isso?
Lovecchio só perdeu a perna porque seu atendimento médico foi interrompido para que o Deops o interrogasse, provavelmente supondo tratar-se de um participante do atentado atingido pela própria bomba, o que acabou causando a gangrena. Então, o laudo inicial dá conta de que ele poderia restabelecer-se bem do atentado. Já o outro relatório atesta que, no tempo em que ele ficou sendo interrogado pelo Deops, sua perna gangrenou e não podia mais ser salva.

Se fosse possível escolher, o sr. se engajaria novamente na luta contra uma ditadura? Ou mudaria métodos de ação?
Pegar em armas deve ser sempre a última opção. Mas, numa situação como a que existia no Brasil em abril de 1969, quatro meses depois da assinatura do famigerado AI-5, eu pegaria em armas de novo, sim. Pois aquela passou a ser a única forma de resistência possível. E eu continuo fiel aos valores da minha geração, como o de que, diante das injustiças extremas, ser omisso é ser cúmplice.

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