2015 foi o ano em que uma entrevista de um grande empresário podia dar a Dilma mais uma semana de sobrevida ou jogar mais gasolina na fogueira da sua deposição. Uma manifestação de rua podia desencadear o impeachment ou enterrá-lo. É um claro sintoma de pane geral do sistema político. Ao mesmo tempo, levou à novidade muito interessante de uma espécie de retomada da política pela sociedade. Em lugar de partidos, o centro da disputa política foi tomado por núcleos sociais com posições divergentes, com sugestões diferentes quanto ao rumo mais adequado a seguir. Em um ou outro caso, pode ser que tenham vinculação a um partido. Mas, no geral, expressam posições que não cabem dentro de um partido. Pelo menos não na confusão partidária atual.
Mas se são movimentos que não estão diretamente ligados à política oficial, não deixam por isso de se orientar por ela de alguma maneira. Essa é a segunda novidade que saiu de 2015. Tendo sobrevivido ao impeachment, o governo Dilma acabou por se tornar uma arena de disputa entre projetos opostos sobre qual o melhor rumo a seguir. É um governo que opera como se estivesse aberto para ser tomado por qualquer um dos lados, desde que acumulem força suficiente para isso. Mesmo que seja por cima das convicções pessoais da presidente, que são muitas e persistentes. É um governo que não se decide por um dos lados nem abandona nenhum deles. Ao contrário, todo dia dá uma no cravo e outra na ferradura.
A entrada de Lula na mira da Lava-Jato e do MP de São Paulo pode mudar esse rearranjo construído a duras penas ao longo de 2015. Como não existe impeachment de ex-presidente, a disputa sai do sistema político diretamente para a sociedade. Não há como encontrar expressão no sistema político para o ataque e a defesa públicos de Lula. A disputa vai para a rua. Os nós do debate público que estão ainda conectados de alguma maneira a esse governo que se apresenta como arena de batalha de resultado indefinido serão imediatamente invadidos pela luta social direta. Enfim, é uma crise de cara nova.
O sistema político que entrou em pane funcionava como um trem: não importa qual era a locomotiva, os vagões que apoiavam o governo eram sempre os mesmos. A eleição presidencial decidia apenas qual locomotiva devia empurrar esses mesmos vagões de sempre, cheios de PMDBs. Como são vagões pesados, difíceis de puxar, as locomotivas são obrigadas a andar a passo lento, seja para que direção for. Logística não é, de fato, o ponto forte do país.
A crise atual é a crise desse modelo ferroviário da política. No primeiro mandato de Dilma, a locomotiva se desconectou por um tempo dos vagões, ganhando velocidade e direção próprias. Dilma se aventurou a reformar o capitalismo brasileiro de alto a baixo, passando por cima dessa lógica ferroviária da política. Quando o PMDB acordou para o problema, já era tarde. Na eleição de 2014, dividiu-se ao meio entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Mas aí veio a Lava-Jato e o trem pemedebista simplesmente descarrilou.
A agonia de 2015 foi a somatória de todos esses acidentes. A ferrovia foi desativada e nenhuma operação de transporte alternativo foi oferecida. As locomotivas dos últimos vinte anos, PT e PSDB, entraram em manutenção por tempo indeterminado. Os vagões de apoio parlamentar tentam desesperadamente voltar aos trilhos e encontrar desvios para fugir da ação saneadora da Lava-Jato.
Com a pane do sistema ferroviário da política veio a limitação da margem de ação de Dilma. A permanente ameaça de destituição e a constante impossibilidade de constituir uma base parlamentar com alguma consistência garantiram que a presidente não estivesse em condições de repetir uma política como a de seu primeiro mandato. Quando parecia encontrar algum respiro, lá vinha alguma pedra a quebrar a vidraça recém-trocada. Cada avanço da Lava-Jato fortalecia o mandato de Dilma, ao mesmo tempo em que desorganizava o sistema político, fragilizando o governo.
A característica da situação atual é que Dilma acabou assumindo o lugar de gestora do tráfego político que ainda resta. A movimentação vem de organizações formais e informais da sociedade, vem do debate público que se tem. Dilma se colocou no lugar de quem arbitra as disputas entre as posições sem dar vitória a nenhuma delas. Contra os interesses de locomotivas e vagões do sistema político, não mexe uma palha para atrapalhar a Lava-Jato. A favor de posições liberais, defende o ajuste fiscal e alguma reforma na Previdência. A favor de posições social-desenvolvimentistas, raspa o cofre para oferecer crédito em bancos públicos e se recusa a fazer cortes ainda mais profundos no orçamento. Vai de um lado para o outro conforme a necessidade e as circunstâncias. É o que aproxima o seu segundo governo do período Itamar Franco.
Em lugar dos vagões pesados do pemedebismo, o que ata Dilma agora é a pressão do debate público e dos lobbies no governo dos diferentes projetos para o país. Tanto no sentido de impedi-la de executar uma política própria como no sentido de obrigá-la a se espremer entre orientações políticas irreconciliáveis. Não é à toa que uma mesma pessoa que declara o governo incapaz de governar exige ao mesmo tempo que ele governe. É a receita certa para travar o país em suas crises econômica e política. Até que o tempo as resolva, sabe-se lá.
Mas esse arranjo foi também a maneira de garantir que a disputa não fosse resolvida de uma vez por todas em favor de nenhum dos lados enquanto não se reorganizar em novas bases o sistema político, enquanto não se abandonar o modelo ferroviário em favor de uma democracia que tenha de fato bancadas de situação e de oposição disputando em condições de igualdade no Congresso. E, muito provavelmente, enquanto não vierem as eleições de 2018. É essa forma de governar e esse calendário político que podem ter caducado com a substituição de Dilma por Lula no papel de ícone de todas as desgraças.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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