O Sr. Emir Sader desde a chegada do PT ao governo do Brasil tem se dedicado a defender o lulismo pela esquerda e da esquerda. De maneira habilidosa e, muitas vezes cínica, em sua análise justificativa as políticas de caráter liberal e pró-sistêmicas são colocadas como “necessárias” frente à herança neoliberal. As políticas sociais focalizadas são envernizadas de um vermelho ofuscante que esconde a ausência de medidas estruturais que ataquem a raiz da desigualdade social brasileira na política econômica do PT.
Recentemente lançou um artigo sinuoso intitulado Por que a extrema esquerda fracassou no qual sustenta que a “extrema” esquerda latino-americana tem sido denuncista e estaria isolada tendo como inimigos fundamentais os governos “progressistas” da América Latina, em especial no Brasil. Sua tese está assentada em três pilares: a) A conjuntura é desfavorável, marcada pela herança do neoliberalismo, logo a tarefa central da esquerda seria a luta antineoliberal; b) O governo do PT seria parte de um bloco antineoliberal no continente, criticá-lo seria fazer o jogo da direita; c) a política do PSOL (e da extrema esquerda) seria essencialmente moralista, sem um projeto alternativo e seu sucesso deve ser medido pelo termômetro eleitoral.
Em primeiro lugar, cabe fazer a diferenciação (que o Sr. Sader faz questão de não fazer) entre os governos da América Latina, produtos de situações distintas, com evoluções distintas e com direções políticas distintas. Para Sader, Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Brasil são produtos da mesma motivação antineoliberal o que temos acordo, no entanto, para nós as respostas dadas e os blocos de poder constituídos são absolutamente opostos em algumas comparações.
Se compararmos a postura do governo brasileiro frente às oligarquias agrárias e o governo venezuelano, por exemplo, veremos que enquanto Chávez editou a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário em dezembro de 2001 e apoiou-se na mobilização popular para derrotar o golpe que as oligarquias tentaram lhe impor em abril de 2002, Lula nomeou, no primeiro ano de seu mandato, um representante do latifúndio brasileiro, Roberto Rodrigues, para ser Ministro da Agricultura. Mais que isso, aliou-se política e economicamente às principais representações das oligarquias brasileiras como Sarney, Renan Calheiros e Collor de Mello para implantar um modelo de desenvolvimento agro-exportador de commodities no qual o agronegócio é o eixo. Não houve golpe, assim como não houve nenhum enfrentamento à concentração de terras no Brasil.
Declarações recentes do Movimento Sem Terra (MST) revelam ainda que a presidente Dilma não desapropriou nenhuma área para Reforma Agrária em 2013. Segundo a direção nacional do movimento “em 2010, prestes a deixar o Palácio do Planalto, o então presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva assinou 158 decretos de desapropriação de imóveis rurais. No ano seguinte, a afilhada política dele baixou a marca para 58. Em 2012, ela manteve o freio e reduziu para 28 decretos”. Esta é a realidade concreta em que estamos.
Podemos ir mais longe e perguntar: por que não foi enfrentada a dívida pública no Brasil como no Equador? Será que faz parte da luta antineoliberal entregar quase metade do orçamento da União aos serviços da dívida, financiando os banqueiros sem sequer auditá-la? Ou por que os indígenas estão sendo expulsos de suas terras no Brasil para viabilizar grandes obras de altíssimo impacto ambiental enquanto na Bolívia os povos originários decretaram seu Estado Plurinacional?
Muito mais parecidos estão Brasil e Argentina em sua política, mas nas eleições recentes da Argentina, na qual a “extrema” esquerda teve um crescimento importante, Emir Sader prefere não falar. Fala dos elementos progressivos da política externa do governo brasileiro (reconhecidos pelo PSOL, como no caso de Honduras), mas cala sobre a exportação dos interesses econômicos de construtoras como Odebrecht e Camargo Correa para os países mais pobres da América Latina, atuando como defensor internacional dos interesses da burguesia nacional. Cala também sobre a exportação da política “light” do PT e do Foro de São Paulo a Ollanta Humala no Peru, retirando o conteúdo de enfrentamento tão necessário àquele país, para garantir um ambiente de estabilidade para os grandes negócios capitalistas na região. Esconde propositalmente que quando Chávez e o povo venezuelano derrotaram o golpe da direita, o PT não quis trazê-lo ao Fórum Social Mundial em 2003. Aliás, Chávez naquela ocasião foi a Porto Alegre por convite da então Deputada Federal Luciana Genro e dos “radicais do PT”, futuros dirigentes do PSOL. Lula foi a Davos dar conselhos aos organismos multilaterais do capital.
Sader rapidamente responderia, não foi possível apresentar medidas anticapitalistas, pois a conjuntura era desfavorável e talvez o Brasil fosse o mais desmobilizado dos países citados. Mas o que dizer após as Jornadas de Junho? Por que o governo petista não apresentou nenhuma medida de caráter mais estrutural após os grandes levantes que sacudiram o Brasil? Enquanto o movimento nas ruas exigia “saúde e educação padrão FIFA”, o PT dedicou-se a propalar a falácia de que se tratava de um “golpe da direita”. Enquanto a população, indignada pela deterioração dos serviços públicos começada por FHC e seguida pelo lulismo, estava nas ruas exigindo uma transformação das instituições políticas rumo a uma democracia real, o governo do PT através de seu Ministro da Justiça, oferecia a Força Nacional para endossar a política de repressão e criminalização de governos neoliberais como o de Alckimin em São Paulo e Cabral no Rio de Janeiro. Quem faz o jogo da direita? Em que armadilhas caiu o PT? Será que estamos presenciando o resultado da conversão transformista que o transformou em partido da ordem?
Nossa hipótese é que sim. Por isso, a política anticorrupção nada tem de moralista, pois a corrupção é o mecanismo de imbricação dos interesses econômicos e políticos. Não à toa, o “mensalão” foi uma operação para aprovar uma reforma da previdência de cariz absolutamente neoliberal, favorecendo aos fundos de pensão (incluindo alguns com participação de dirigentes do PT), um dos mecanismos mais perversos do mercado financeiro, ainda mais quando se trata de dinheiro destinado às aposentadorias dos trabalhadores. Foi, ainda, o mecanismo de constituição da base governista no Congresso Nacional. Como sabemos, há muitos deputados à venda na base dos partidos, e o PT – para garantir uma governabilidade cômoda e inofensiva aos interesses do capital – aceitou comprar. Este é o papel de um partido que em seu manifesto inicial dizia-se nascer “da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política”? Não à toa o PSOL começou a nascer naquele episódio.
Por último, o Sr. Emir Sader decreta o “fracasso da extrema esquerda” pelos índices eleitorais, aos moldes da velha tradição social-democrata, que confunde força eleitoral com maioria social. O critério de análise fundamental que Sader, capturado pela acomodação petista esquece, é que o Estado Burguês legitima sua dominação com as eleições e não acaba com ela por esta via. Apesar de o PSOL ter crescido muito eleitoralmente desde sua fundação, é a luta de classes que define os rumos da dominação política e econômica e, portanto, o desenvolvimento de alternativas de esquerda, combativas com vocação para a transformação social, aliás, como foi o nascimento do PT nos anos 80.
Agora, a luta de classes esquentou no Brasil, grandes mobilizações exigiram mudanças mais profundas e como respondeu o governo “progressista” do PT? Defendendo a ordem e os negócios daqueles que além de aliados políticos se tornaram financiadores de campanha. Viraram até mesmo “exemplos bem-sucedidos a ser seguidos”, como nas palavras de Dilma referindo-se a Eike Batista.
O verdadeiro bloco de poder no Brasil, sustentado e promovido pelo PT, tem hegemonia da classe dominante e nenhuma luta por parte do PT em seu interior para impor os interesses da maioria do povo. Se for verdade que o governo progressista brasileiro, como se refere Sader, foi produto de uma onda de descontentamento e esperança de mudanças, depois de privatizar, corromper, terceirizar e legitimar a repressão, quem realmente fracassou em seus objetivos?
Bernardo Corrêa é sociólogo da Fundação Lauro Campos e presidente do PSOL Porto Alegre.