A disputa ora em consideração já está em sua segunda rodada – a primeira foi a Lei do Pré Sal de 2010, que criou regras de partilha específicas para o petróleo extraído desta zona, beneficiando estados e municípios não produtores de petróleo. Mas a Lei somente teve validade para novos contratos de exploração depois de sua promulgação.
Por sua vez, há uma segunda rodada de regulação neste campo, que é assunto ora em processo de sanção presidencial e que consistiria basicamente numa nova divisão dos royalties (do Pré-Sal), escalonada de 2013 a 2020, para contratos já vigentes na ocasião da promulgação do novo texto legal (dezembro de 2012). A nova regra mudaria substancialmente a participação da União e dos estados e municípios não produtores, que cederiam parcela apreciável dos ‘royalties’ para os não produtores. Exemplo: estes teriam uma participação equivalente aos produtores – cerca de 21% do bolo total dividido pelos 25 estados atuais, enquanto os produtores ficariam com 20% no final do período considerado.
O jogo de percentuais, com seu detalhamento, que não cabe aqui reproduzir, tem um evidente endereço: os estados e municípios não produtores reivindicam legalmente uma elevação substancial da participação na renda petroleira, que iria dos 8,75% atuais para 42% no final do período, enquanto que os estados e municípios produtores e afetados teriam queda de participação – dos 61% atuais para 38% em números redondos.
Observe o leitor que essa divisão é sobre o petróleo do Pré-Sal, algo em torno dos 20% da produção atual da PETROBRÁS, mas esta fatia deverá crescer substancialmente nos próximos anos. Diante da disputa política por recursos econômicos, parece-nos fundamental esclarecer duas questões subjacentes à discussão: 1) o que está em disputa; 2) que critério ético mais se aproximaria a uma legislação do “interesse geral”. Uma terceira questão, as destinações setoriais orçamentárias desses recursos, é igualmente relevante, mas não cabe tratar nos limites deste artigo.
A expressão “royalty”, como uma renda de compensação aos territórios potencialmente afetados pela exploração econômica, que é o argumento principal dos estados e municípios produtores, revela apenas uma parte do fenômeno em disputa. Na verdade, o que está em questão é a partilha da renda fundiária, oriunda da forte expansão atual e prospectiva do preço da ‘commodity’ petróleo, reivindicada pelos proprietários territoriais das reservas naturais. A Lei do Pré-Sal definiu esta renda em termos físicos (percentual do petróleo extraído), mas ela depende basicamente dos custos industriais da extração do barril de petróleo, ai já incluído o lucro normal, em comparação aos preços de venda deste petróleo no mercado mundial.
Essa renda fundiária é parte do lucro extraordinário, que consiste em produzir petróleo atualmente a 30 ou 35 dólares de custo industrial unitário e vendê-lo a preços internacionais três vezes mais altos. Mas os preços de commodities são variáveis e os custos sociais da extração não são iguais aos custos industriais. Há custos invisíveis, associados aos graves riscos de acidentes em larga escala, que estão longe da previsão econômica. As reservas naturais, por sua vez, são finitas. Portanto, a divisão do bolo da renda fundiária do petróleo não é nenhuma ‘galinha dos ovos de ouro’ e dependerá de fato de muitos outros fatores em evolução.
Diante do fato, de que está em disputa uma renda fundiária reivindicada internamente por diferentes proprietários das reservas naturais, cabe a pergunta sobre que critérios de partilha seriam justos à situação, o que a própria lei precisaria perseguir. Observe-se que o critério do auto-interesse, transposto do plano individual para o agir dos entes federativos, conduz o impasse, que de resto é o que temos no debate atual. Maiorias parlamentares também precisam se guiar por critérios éticos, sob pena de produzir impasses para si próprias.
Ora, chegando aonde chegou a economia internacional do petróleo, a ponto de produzir renda fundiária internacional compatível com exploração em águas profundas, cria-se por este fato uma pressão inusitada por superexploração desse recurso, encadeada agora com a renda orçamentária vinculada de todos os entes federativos. Ademais, não se tem a dimensão dos custos sociais dessa superexploração, mas apenas a previsibilidade dos custos privados. Essas duas questões recomendariam uma divisão do bolo da renda fundiária muito mais preocupada com a contenção dessa superexploração e a prevenção dos riscos sociais e ambientais, que infelizmente não estão no debate. Em parte, os estados produtores têm essa responsabilidade imediata e por aí se justifica uma fatia maior dos ‘royalties’. Mas a renda fundiária como renda social é recurso do conjunto do país, para ser usada numa perspectiva de transição da economia petroleira em exaustão natural para uma outra matriz energética.
Finalmente, ao se concentrar o debate principal na divisão da renda fundiária do petróleo entre entes federativos, sem discutir os rumos do desenvolvimento de um sistema econômico hoje fortemente dependente de recursos naturais, é de se crer que não estamos ajudando nem União, nem estados nem os municípios, sejam eles produtores ou não de petróleo. Precedente à partilha, haveria que discernir sobre as destinações compatíveis com os rumos futuros do desenvolvimento, sob pena de embarcarmos o conflito federativo numa nau sem rumo.
* Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.
(Correio da Cidadania)