“[A] autocompreensão do ser humano é determinada pelos tipos de atividade que a estrutura econônomica da sociedade promove ou inibe. Essas condições determinam para cada ser humano o espaço de suas possibilidades de reação e de ação. ... [o] fundamento da manipulação... [é] contornar com indiferença todas as questões autênticas, para tornar plausível a manipulação prática dos problemas. ...traço básico da manipulação... eliminar questões... para que nenhuma reflexão sobre problemas da realidade perturbe o funcionamento do aparato manipulatório.”
György Lukács [1]
“Lá vem o Brasil descendo a ladeira/ No equilíbrio da lata não é brincadeira/ Lá vem o Brasil descendo a ladeira/ Arriscando um verso, gritou o poeta/Respondeu o povo num samba sem medo”
Moraes Moreira [2]
Para que “...formas de dominação de minorias tecnicamente poderosas sobre maiorias que elas enganam e exploram”[3] possam ‘provar’ a ‘incompetência’, ‘ignorância gerencial’, ou ‘incapacidade administrativa’ de uma administração a contrariar seus interesses, valerá tudo. Até mesmo tirar partido da ocorrência de fenômenos climáticos adversos a prejudicar uma economia que –deverá ‘ficar claro’- jamais terá sido conduzida de modo adequado. E se houverem condições favoráveis para o exercício do risco, da venture, do empreendedorismo e todas as economicamente admiradas atitudes próprias a um sistema dito pródigo em premiar os mais ousados, será necessário obstaculizar os ímpetos, danificar os trilhos, parar a composição. Não importará se a realidade escancarada à frente dos olhos demonstrar as vantagens e oportunidades do momento... a roda não poderá girar, a máquina não haverá de funcionar. Observe-se, porém, que, para prosperarem, tais desígnios necessitam do terreno fértil e dos semeadores sobre os quais alguns pensadores brasileiros formularam hipóteses dignas de nota.
O terreno fértil existiria por conta do pragmatismo da psique do colonizador lusitano, pouco afeto aos sonhos e miragens que mobilizaram outros povos exploradores a procurar pelo mundo quaisquer el dorados, fontes da Juventude e países das amazonas que, eventualmente, pudessem existir. A conquista da Índia por Vasco da Gama, por exemplo, foi uma espécie de ‘páreo corrido’ quando comparada às muitas ‘quase-certezas’ de Cristóvão Colombo relativas à sua pioneira travessia do Atlântico, lembra-nos o autor das seguintes ponderações: “a rotina, e não a razão abstrata, foi o princípio que norteou os portugueses [que] preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas uma às outras”; “...realismo que repele abstrações”[4] Ou seja: para nossos ancestrais lusitanos não é que “o sonho acabou”, ele nunca existiu. Então, tolice esperar inovação a partir de uma cultura habituada a ‘ir atrás’ se houver lama no caminho; a ‘ir na frente’ se houver poeira ou ‘ir no meio’ se houver porteira. Tal prudência, a despeito do mérito inerente a todas elas, garantindo a duração do status quo, conduz à decadência quando exercida de modo contínuo. Modo a interessar os semeadores, as “minorias dominantes, que, em certas circunstâncias, se fecham sobre si próprias, esgotadas de energia criadora, meras intermediadoras do pensamento universal num círculo nacional.*” [5] Por isso, ai dos que, sem o aval do Império, ousarem empreender inovações no Brasil, tal como o fizeram Delmiro Gouvêa, o barão de Mauá, o engenheiro João Augusto Gurgel... Ai.
Como aconteceu em 54 e em 64, é preciso mudar a letra do samba para 2014.
No Brasil a mudança dos atores não afeta os autores.
Ainda.
_____________________________________________
[1] In para uma ontologia do ser social I pgs. 53; 61 e 66
Boitempo Editorial, São Paulo, SP 2012
[2] In Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira
http://www.youtube.com/watch?v=R76umQGYFr4
[3] Gilberto Freyre In Interpretação do Brasil- aspectos da formação social brasileira... p. 163
Companhia Das Letras col. Retratos do Brasil vol. 19 São Paulo,SP 2001
[4] Sérgio Buarque de Holanda In Raízes do Brasil pgs.109 e 115
Companhia Das Letras 26ª. Edição São Paulo,SP 1995
[5] Raymundo Faoro In Os Donos do Poder p.105 vol. I
Publifolha col. Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro São Paulo,SP 2000
*“Em consequência, desdenhosa do contato íntimo com categorias sociais que atuam na base da pirâmide, tem caráter escolástico, acadêmico, no sentido de se alhear dos problemas concretos da vida e da sociedade. Seu pensamento político será de caráter abstrato, voltado para as doutrinas universais, sufocado no idealismo das fórmulas. ... Os países aprisionados pelo estamento se modernizam por via de um plano do alto, imposto à nação, com a teorização, retardada de muitas décadas, de processos espontâneos nas sedes criadoras. O estamento absorve as técnicas importadas... para que as novas idéias, as ideologias não perturbem o domínio da sociedade...”