"Direito trabalhista não é custo para as empresas", diz juiz do Trabalho

Em entrevista, Jorge Souto Maior, juiz do Trabalho e professor da USP, defende integridade da atual legislação trabalhista e afirma que flexibilização das relações de emprego diminui salários e não aquece economia 


Jorge Souto Maior é juiz da 3ª Vara do Trabalho em Jundiaí e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Nesta entrevista concedida à Repórter Brasil, ele fala sobre os ataques que sofre a legislação trabalhista nacional desde sua concepção no início da década de 1930, e assegura que ela nunca foi um entrave ao desenvolvimento econômico do país. Contrário às propostas de flexibilização que a todo momento são colocadas na agenda política nacional, ele também afirma que os países que apostaram na redução de direitos trabalhistas acabaram voltando atrás na escolha, como a Espanha e a Argentina.

Repórter Brasil - Na opinião de alguns segmentos do empresariado nacional, a atual legislação trabalhista é vista como um entrave ao desenvolvimento econômico do país. Como o senhor avalia essas críticas?

Jorge Souto Maior - Elas são bem antigas. Já existiam mesmo antes da sua implementação. Enquanto o mundo já vivenciava a experiência de um autêntico Direito do Trabalho, no Brasil a legislação não conseguia vencer a fase dos projetos de lei, em razão dos ataques que sofria. A primeira lei trabalhista de âmbito nacional, a lei de férias de 1926, foi intensamente atacada sob os mais diversos argumentos, inclusive o de que ela seria o incentivo ao ócio, gerando prejuízos de ordem moral aos trabalhadores. Mesmo após se reconhecer que a lei poderia ser útil para o patronato, por incentivar a assiduidade no trabalho, vez que conferia tal direito a quem não faltasse ao trabalho, a lei não foi cumprida porque o governo, cedendo a pressões, não organizou uma estrutura para fiscalização do respeito à lei. Quando enfim a legislação trabalhista tornou-se uma realidade no Brasil, a partir da década de 30, ainda que tenha servido para o incremento do nosso capitalismo industrial, não deixou de sofrer ataques e isso se dá até hoje.

Um dos argumentos repetidamente utilizados para o ataque à legislação do trabalho é o de que ela impediria o desenvolvimento econômico. Se esse argumento fosse válido, nós já teríamos um desenvolvimento econômico invejável. Primeiro, porque, em geral, a legislação existente não é cumprida. Segundo, porque a que existia, antes de 1967, não existe mais, tendo caminhado na linha da tão propalada flexibilização.

Por exemplo?

Em 1967, a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) representou a extinção da estabilidade no emprego. Foi uma troca: tirou-se a estabilidade do trabalhador e colocou-se no lugar esse sistema de FGTS. Foram os próprios empregadores que pleitearam essa mudança e agora querem acabar com o FGTS, atacando-o de gerar custo. Esquecem, no entanto, que esse foi o preço que aceitaram pagar para acabar com a estabilidade no emprego.

Em 1974, veio a criação do trabalho temporário. Dizia-se que era preciso flexibilizar, diminuir o custo, para que em determinadas épocas do ano as empresas pudessem contratar pessoas sem ter depois que arcar com os custos indenizatórios.

Em 1977, veio a lei do estágio, atendendo uma reivindicação das empresas para a contratação de jovens. Sob o argumento de favorecer o ingresso destes no mercado de trabalho e também para permitir às empresas formarem os profissionais que seriam seus empregados amanhã, essa lei de estágio, embora possa ter alguma razão do ponto de vista sociológico, serviu mesmo como saída econômica para utilização de mão-de-obra barata.

Depois, em 1983, criou-se a legislação específica para a categoria dos vigilantes. De uma jornada de trabalho de seis horas, esses trabalhadores passaram a trabalhar até 12 horas por dia, sem direito a hora-extra. Isso também se justificou pela necessidade de as empresas amoldarem seus sistemas de segurança sem ter os mesmos custos dos trabalhadores efetivos.

Em 1993, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho foi radicalmente alterada (originando a Súmula n. 331) para, mesmo sem uma autorização legal, considerar possível a elaboração de um contrato entre empresas para prestação de serviço no estabelecimento da empresa "tomadora" da mão de obra. Na prática, a terceirização provocou maior ineficácia das normas do direito do trabalho e serviu ao propósito da redução dos custos do trabalho.

Em 1998, possibilitou-se, por lei, a formação do chamado banco de horas, que, em concreto, tem servido como uma fórmula para não pagar horas extras, compensando-as em um período de 12 meses. Trata-se de algo que não tem paralelo no mundo. É interessante perceber que, no conjunto, essa formas de flexibilização que inventamos no Brasil não têm paralelo no mundo.

Já fizemos tudo que poderia ser feito do ponto de vista da flexibilização e os salários só pioraram. Além disso, a economia não cresceu - pelo contrário.


Há casos de flexibilização da legislação trabalhista em outras partes do mundo?

Vários países do mundo que passaram por esse processo de flexibilização retomaram o caminho da eficácia do Direito do Trabalho, caso da Espanha e agora da Argentina - que na época do Menem (Carlos Menem, presidente do país de 1989 a 1999) foi conduzida a um liberalismo maluco e chegou ao colapso. O que se percebe no mundo é uma retomada em torno da consciência da importância dos direitos sociais, trabalhistas.


Em comparação com outros países, a legislação brasileira é realmente protecionista?

É difícil falar genericamente. Mas, comparando a legislação trabalhista brasileira com a francesa, as leis daquele país são muito mais protetivas do que as brasileiras. Seja em número de artigos ou de complexidade. E, do ponto de vista geral, na Europa Ocidental, a comparação com o Brasil faz com que o resultado, para a legislação brasileira, seja completamente negativo em termos de proteção, a começar pela possibilidade de dispensa sem justa motivação, que não existe nesses países. Para se dispensar um trabalhador é preciso uma razão. Não é arbitrário como aqui, onde se dispensa um trabalhador por meio de carta. Chega-se ao ponto de dispensar o empregado e desafiá-lo a procurar seus direitos, como se ir à Justiça fosse ir ao departamento de recursos humanos da empresa.

O problema então é de outra ordem? O que inibe o desenvolvimento das empresas tem mais a ver com questões tributárias, burocracia?

O problema não é o Direito do Trabalho, certamente. Existem vários outros problemas. Ninguém nega que precisamos reformular nosso modelo de capitalismo. Mas não vamos reformular isso através da legislação do trabalho. É ilusão uma empresa imaginar que ela possa ter sucesso econômico se pura e simplesmente reduzir o custo dos trabalhadores. O lucro não está apenas no baixo custo. Eu posso ter um custo baixo, porém, se meu produto fica no estoque, isso não resolve nada. E para comercializar é preciso mercado interno. É preciso de gente que tenha dinheiro. Se eu pago menos para o meu empregado, uma outra empresa também paga pouco para o seu empregado. Consequentemente, aquele que seria o meu consumidor deixa de ser. É uma lógica destrutiva.

Existem países na contramão dessa tendência?

Há uma experiência interessante e recente do Uruguai, que de uns três anos para cá implementou uma legislação trabalhista mais sólida. Quanto à terceirização, por exemplo, fixaram-se regras de proteção como a responsabilidade solidária entre as empresas. Implementaram uma legislação forte no sentido de regular um patamar de dignidade e respeito e o efeito que se sentiu foi a melhoria da economia.

A reforma trabalhista é um dos grandes temas que compõem a atual agenda do governo federal. O que o senhor pensa sobre esse assunto e sobre o discurso de que empregados e patrões precisam de liberdade para pactuar novas relações de trabalho?

A liberdade de pactuação é fundamental no Direito do Trabalho, mas ela se dá a partir de um patamar mínimo de regulação. Essa liberdade total de negociação só favorece a grandes empresas que têm condições de impor aos trabalhadores uma lógica menos custosa para ela, favorecendo uma lógica de monopólio e prejudicando, por conseqüência, as pequenas e médias empresas. A negociação coletiva é para melhorar as condições dos trabalhadores, e não para piorar.

Como o senhor analisa a atuação dos juízes do Trabalho no Brasil? Os críticos dizem que ela privilegia os empregados em detrimento dos empregadores.

Nós devemos preservar a Justiça do Trabalho porque é uma instituição que tem uma função importantíssima. Não podemos acabar com a polícia porque um policial matou um inocente. Devemos preservar as instituições e aprimorá-las. As críticas generalizadas, portanto, devem ser evitadas. Além disso, a postura da Justiça do Trabalho não se encaixa nesse padrão de que o empregado sempre ganha. A Justiça aplica as leis e não está se importando se A ou B vai ganhar. O problema é que no Brasil instaurou-se um clima de que o desrespeito à ordem jurídica trabalhista não gera conseqüências. Acredita-se que respeitar os direitos dos trabalhadores e não respeitar é a mesma coisa.

Quais são as principais implicações que as terceirizações podem acarretar para o mercado de trabalho?

A terceirização gera efeitos maléficos na nossa sociedade em diversos aspectos, pois inaugura um sentimento de que as vinculações sociais regem-se pela precariedade, que não estão submetidas a uma necessidade de vínculo duradouro, de contato humano. E isso é tão verdade que os terceirizados que existem por aí não se socializam no trabalho. Eles são segregados: almoçam em horários distintos, sobem por elevadores separados, usam roupas com cores diferentes para serem identificados como tais - até pelo pressuposto jurídico que se criou, de que não se pode subordinar o terceirizado. Eles trabalham um mês em uma empresa, alguns meses em outra, e são transferidos como se mudam lugar os móveis.

As empresas não percebem que essa lógica da precarização atinge-lhes também prejudicialmente porque muitas vezes o empregado, pelo desrespeito mútuo que se instaura, está na empresa de passagem, não se integrando aos seus problemas.

E, na hora em que surge uma oportunidade melhor, ele muda de emprego...
Vai embora, não "veste a camisa", como se costumava verificar antigamente. Isso não é bom para o empregador. Muitos empregadores, iludidos por pessoas que não conhecem o Direito do Trabalho, são incentivados a adotar fórmulas de contratação para tentar evitar a incidência da legislação trabalhista, considerando até que estão agindo dentro da lei. Mas, vale perceber: pagar, por exemplo, dez horas extras por mês gera um custo, mas esse custo pode ser transferido para o produto. Não pagar essas horas extras por cinco anos, e depois ser condenado a pagar tudo de uma vez, gera um custo que pesa na contabilidade. O empregador não tem de onde tirar o dinheiro para pagar o que deve. E o que se imagina que o juiz deva dizer a este empregador: "Tudo bem, o direito do empregado não precisava mesmo ser respeitado?".

Como o senhor avalia a agenda de discussões sobre questões trabalhistas no poder legislativo e no poder executivo, como a propostas de regulamentação de greve dos servidores públicos e o debate em torno da Emenda 3?

Essa discussão da reforma trabalhista, que não é nova, só serve para não colocar em pauta assuntos mais relevantes para a nossa sociedade. Fica esse jogo de cena, pondo-se em questão, por exemplo, um direito fundamental dos trabalhadores que é o direito de greve. Quem imaginaria um governo do PT fazendo isso? Não se pode atacar assim um direito, como se os trabalhadores que fazem greve fossem bandidos. Eles estão reivindicando seus direitos dentro da lógica do sistema, não estão fazendo uma revolução. Esse diálogo faz parte do modelo. Nas negociações coletivas, a única forma de se estabelecer um choque de forças, por parte dos trabalhadores, é cruzando os braços, mostrando que eles são importantes. Ninguém está falando que o grevista possa quebrar as coisas, depredar o patrimônio público ou privado, mas o direito à greve deve existir.

O que falta para que os direitos do trabalho sejam efetivados no país?

Nós precisamos implementar uma idéia de pacto social no país, um projeto de sociedade. E o direito do trabalhador é um direito constitucional consagrado previsto em diversas declarações internacionais. Não é um problema de custo, é um problema de dignidade. Se houver problemas pontuais com a legislação trabalhista, que sejam apontados e discutidos. Mas não podemos partir do pressuposto que direito do trabalho é custo. Uma agressão generalizada aos direitos trabalhistas quebra o pacto que deu origem ao nosso modelo atual de sociedade. Sem se propor um novo modelo, instaura-se a barbárie, da qual todos somos vítimas.
(Envolverde/Repórter Brasil)

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