Arte: Alex Soares
No dia 26 de junho, os bancos Bradesco, Unibanco e Itaú anunciaram a venda de dois terços das ações da Serasa à corretora irlandesa Experian por 1,2 bilhão de dólares (R$2,3 bilhões de reais).
Deve ter sido a primeira vez que a imprensa monopolista publicou os nomes dos donos da Serasa — empresa com a qual milhões de brasileiros adquiriram trágica intimidade após o Plano Real, mas a cujo respeito pouco se sabe, já que vive na sombra. Um silêncio de extensão semelhante ao dano causado por suas atividades à população e à economia do país.
Faltou, no entanto, esclarecer alguns pontos. Por exemplo: por que a Serasa — em tese, mera gerenciadora de um banco de dados sobre inadimplência — justificaria um investimento tão vultoso? Qual o interesse do capital estrangeiro nela e que tipo de retorno a Experian imagina ter?
Espelho da ruína
A Serasa foi, juntamente com seus acionistas — os bancos — ou talvez até mais do que eles, a empresa que mais lucrou no Brasil nos anos do Plano Real. Nestes treze anos em que inúmeras empresas brasileiras — pequenas, médias ou grandes — dos mais variados ramos de atividade faliram ou foram absorvidas por concorrentes estrangeiras, a Serasa experimentou um crescimento avassalador. Criada em 1968 para agilizar aspectos operacionais da atividade bancária, ela transformou-se, nos anos 90, num gigante com 300 mil clientes que atende 3,5 milhões de consultas por dia. Segundo dados da CPI que a investigou em 2003, seu cadastro de inadimplentes compunha-se, naquele ano, dos nomes de 23 milhões de brasileiros — algo como um quinto da população adulta do país.
O crescimento da Serasa espelha a trágica situação a que foi levada a economia brasileira no período Fernando Henrique Cardoso.
Se até então a utilidade desse tipo de cadastro era ajudar os comerciantes a se proteger de meia dúzia de estelionatários, após o Real a inadimplência transforma-se num dado econômico e social relevante. Em virtude dos mais variados fatores — alto desemprego, juros estratosféricos, quebra generalizada de empresas em virtude do barateamento das importações —, milhões de cidadãos honestos foram arruinados. Os cadastros da Serasa aumentaram bastante, acrescidos agora de seus nomes. E tornaram-se objeto de maior demanda por parte do comércio, que passou a ter a inadimplência como preocupação central.
Ainda que a Serasa não causasse maiores danos, seu crescimento, por si só, seria a prova mais eloquente do crime perpetrado contra o país a partir do período FHC. O esplendor atingido por uma empresa que tem na desgraça da economia a fonte de seus lucros é uma ofensa ao país. A comparação com os preços de venda de firmas que eram verdadeiros símbolos da economia brasileira revela a extensão do absurdo.
A Metal Leve, empresa-modelo do setor privado nacional, com duas fábricas no USA e que exportava autopeças para mais de 50 países, foi vendida a uma concorrente alemã por 66 milhões de dólares. A Varig foi comprada recentemente pela Gol por R$ 320 milhões — quase oito vezes menos que a Serasa.
Instrumento de extorsão
Tanto em patrimônio físico (aviões, bens de capital, instalações industriais) quanto em ativos intangíveis (força da marca, clientela, tecnologia), Varig e Metal Leve eram empresas poderosíssimas. E a Serasa, o que é?
É preciso, primeiro, entender o que ela não é.
A Serasa não é um simples banco de dados à disposição de comerciantes preocupados com a satisfação de seus créditos, mas o mais monstruoso instrumento de extorsão e chantagem usado pelo setor financeiro contra a população — com a cumplicidade ativa de órgãos estatais.
Além de proprietários da Serasa, os bancos são — diretamente ou através das financeiras que controlam — também seus maiores alimentadores.
São eles — com os juros que cobram e as agressivas estratégias que usam para induzir a população a contrair empréstimos — os grandes responsáveis pela inadimplência. São eles que alimentam os cadastros da Serasa com os nomes dos cidadãos que sucumbem a seus artifícios. E são eles os maiores beneficiários da difusão do hábito de consultar a Serasa entre os comerciantes, já que isto amplia os danos causados a quem tem o nome incluído nos cadastros da empresa, obrigando milhões de pessoas a empenhar até salários futuros para sair das listas de inadimplentes.
Os bancos destroem o restante da economia e, através da Serasa, lucram com isso duplamente: como acionistas e como credores.
"A Serasa simplesmente fornece o instrumento material para a vexação pública dos devedores" — diz o procurador da República André Ramos, em ação movida contra ela.
CPI abafada
Em 2003, a Serasa foi tema de uma das CPIs mais tumultuadas — e menos noticiadas — da história da Câmara. O relatório final — inocentando a empresa de todas as acusações formuladas durante a fase de investigação — foi redigido pelo hoje prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e aprovado por 12 votos a 11. Cinco votos pela aprovação vieram de quatro deputados que haviam tido como maiores financiadores de campanha o Unibanco e o Itaú1 (dados do TSE). Kassab precisou votar duas vezes, fazendo uso da prerrogativa do desempate, conferida ao relator.
No entanto, os depoimentos e outras provas colhidas pela CPI, assim como seus pareceres técnicos, oferecem algumas informações proveitosas.
Primeira: entre 1998 e 2002, por meio de um convênio celebrado entre a Febraban e o governo federal, a Serasa teve acesso às bases de dados da Secretaria da Receita Federal (SRF), com informações relativas a todos os portadores de CPF e CNPJ do país (116 milhões de pessoas e 5 milhões de empresas). Essas informações passaram a fazer parte de seu banco de dados e viraram mercadoria — o que talvez explique o vertiginoso crescimento apenas da Serasa, mas não dos Serviços de Proteção ao Crédito (SPCs), mantidos pelas Associações Comerciais, até então as principais fontes de consulta dos lojistas. A SRF transferiu essas informações gratuitamente. Em seu depoimento à CPI, o secretário da Receita de FHC, Everardo Maciel, disse não saber o que era Serasa.
Segunda: além disso, a Serasa tem acesso, por meio de um convênio firmado com o Banco Central, a informações de seus cadastros, referentes à movimentação bancária de todos os cidadãos brasileiros. A empresa recebe, ainda, informações da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Banco do Nordeste e BNDES.
Terceira: CEF, BB e BNB, gestores do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), proíbem a concessão de empréstimos deste fundo — destinado a programas habitacionais — microcrédito, etc. — a pessoas com nome manchado nos cadastros da Serasa. Isto é particularmente nocivo porque implica deixar essas pessoas à margem da vida econômica, impedindo-as, inclusive, de se reerguer das dificuldades que, em muitos casos originaram seus débitos.
Quarta: além das fontes oficiais, os cadastros da Serasa são abastecidos com informações repassadas pelas empresas-clientes. Bancos, financeiras e lojas de varejo incluem nos contratos de abertura de crédito cláusulas autorizando o repasse dos dados dos fregueses à Serasa. Não existe nenhum controle sobre a veracidade dessas informações nem sobre a natureza dos débitos que geram inscrição. A Serasa ganha nas duas pontas: primeiro, tem seu cadastro alimentado sem nenhum ônus; segundo, com essa ampliação da base de dados, aumenta seus lucros, já que seus produtos se tornam mais atraentes para o comércio.
Quinta: essa ausência de controle possibilita a ampliação indiscriminada do uso da Serasa contra o cidadão-consumidor. São inseridas nos cadastros da empresa dívidas que nada têm a ver com contratos de crédito: fornecimento de energia elétrica, telefonia, mensalidades escolares e — pior de tudo: pequenos agricultores que, por qualquer razão, não conseguem entregar aos monopólios agro-industriais a produção contratada.
A Serasa atua, assim, como mecanismo de achaque contra o trabalhador, já que, de um lado, qualquer um pode manchar o nome de alguém em seus cadastros sem que a informação sequer seja averiguada; e, de outro, ter o nome incluído nesses cadastros é garantia de marginalização da vida econômica. O Ministério Público Federal (MPF) e a CPI receberam denúncias sobre a prática da consulta à Serasa como critério para selecionar empregados, adotada por algumas empresas2.
Favorecimento judicial
O sub-relatório de legalidade e os pareceres técnicos da CPI foram bem mais duros que o relatório final, recomendando a remessa dos convênios com órgãos públicos ao TCU e ao MPF e a adoção de medidas visando coibir as práticas da empresa. Uma dessas medidas seria o estabelecimento de um valor mínimo de débito para a inclusão do nome do devedor no cadastro da Serasa. Outra seria a proibição de incluir nomes de consumidores cujos supostos débitos estejam sendo impugnados na justiça.
No entanto, o que aconteceu foi o contrário. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), que até o final de 2003 considerava ilegal a inclusão na Serasa dos nomes de consumidores nessa situação, cedeu ao lobby dos bancos e mudou seu posicionamento. O mesmo STJ considera ilegal a inclusão no cadastro de inadimplentes da Receita Federal dos nomes de contribuintes que discutem débitos tributários em juízo3. O Estado brasileiro confere à Serasa privilégios maiores que os que arroga para si próprio.
Sem sigilo
Essa anuência às práticas da Serasa é tão ou mais grave em vista de suas constantes violações à privacidade dos cidadãos. O pior aspecto de sua atividade talvez não seja manchar nomes, mas vender informações sobre cada passo do consumidor: o que comprou, a que preço, onde, em que condições, quando, etc. Alguns dos produtos oferecidos pela empresa chegam ao ponto de informar quantas e quais lojas o consumidor consultou para saber o preço de um produto que deseja. Essas informações são fornecidas pelas lojas de varejo.
A venda dessas informações foi suspensa pela justiça federal em um dos processos movidos por André Ramos devido à agressão que representava a direitos constitucionais básicos. Mas a Serasa continua de posse delas. Ao comprar a empresa, a Experian está comprando esses dados.
Como se não bastasse, a Serasa atua em outra área sensível: é — em mais um estranho privilégio concedido pelo poder público federal e ao lado do Serpro, Caixa Econômica, Presidência da República, Imprensa Oficial, Poder Judiciário, Receita Federal e outra empresa privada chamada Certisign — uma das oito autoridades certificadoras principais da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP).
Nesta condição, a Serasa controla toda a movimentação bancária do país, uma vez que é a responsável pela certificação digital de quase todas as transações realizadas no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), que centraliza as operações interbancárias e monitora, em tempo real, as informações de que dispõe o Banco Central sobre a situação de cada banco.
1 - Gilberto Kassab (SP) e Mussa Demes (PI), do então PFL; Leo Alcântara (CE), Gonzaga Mota (CE), do PSDB.
2 - Por exemplo, representação 1.34.001.000439/ 2000-05 (Procuradoria da República em São Paulo).
3 - Ver, por exemplo, AgResp 902671.