A prisão de Lupicinio

A Comissão da Verdade não sabe, mas depois do golpe militar de 1964, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) foi preso e permaneceu vários meses trancafiado, primeiro no Quartel da Polícia do Exército, no centro de Porto Alegre e, depois, no presídio da Ilha da Pintada, apesar de nunca ter tido qualquer atividade política. Lá, foi humilhado, espancado e torturado, teve a unha arrancada para não tocar mais violão e contraiu uma tuberculose agravada pelo vento frio do rio Jacuí.

Quem me confidenciou isso foi um dos filhos de Lupicínio, Lôndero Gustavo Dávila Rodrigues, também músico, 67 anos, que hoje trabalha como motorista na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O fato é pouco conhecido, pois Lupicínio não gostava de tocar no assunto. Preferiu silenciá-lo. Morria de vergonha. “E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”, cantava ele em “Vingança”, um grande sucesso dois anos antes de sua morte.

Pra quem tem dinheiro ou diploma, a prisão política pode até ser uma medalha, tem algo de heroico. Mas para as pessoas humildes, como ele, que não se metia em política, a prisão é sempre uma humilhação, algo que deve ser escondido, esquecido - conta o filho de Lupicínio, a quem conheci recentemente, quando ele, dirigindo o carro da Universidade, veio me buscar para participar de uma banca de mestrado lá em Seropédica.

A viagem de ida-e-volta durou mais de cinco horas. Nos primeiros cinco minutos, eu já havia lhe contado que era amazonense, do bairro de Aparecida e, quando deu brecha, mostrei-lhe fotos da minha neta. Nos cinco minutos seguintes, ele já tinha me falado de Lupicínio, seu pai, de dona Emilia, sua mãe, de sua infância em Rio Pardo (RS) e de suas andanças como músico por 29 países. Quando nos despedimos, já éramos amigos de infância.

Nervos de aço

Lôndero tem memória extraordinária e admirável dom de narrar. Suas histórias, que jorraram aos borbotões, podem ocupar várias crônicas dominicais. Ele próprio é um personagem; suas andanças dariam um livro. Mas o que ele viveu com seu pai, boêmio e mulherengo, dá outro livro. Não sei nem por onde começar. Talvez por onde já comecei: a prisão do pai, que teria provocado uma reação até mesmo em “pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração”.

Nós, da família, sofremos muito com a injustiça da prisão. Sabíamos que Lupicínio não se metia em política - contou seu filho, informando ainda que antes da prisão, o pai havia feito uma versão musical - quanta ironia! - para aquela letra da “oração do paraquedista” encontrada com um militar francês morto em 1943 no norte da África. Lôndero recita:

Dai-me Senhor meu Deus o que vos resta
Aquilo que ninguém vos pede
Dai-me tudo o que os outros não querem
a luta e a tormenta
Dai-me, porém, a força, a coragem e a fé.

Lupicínio precisou mesmo de muita coragem e fé para amargar a prisão, onde em vez de tainha na taquara ou peixe assado no espeto de bambu, comeu foi o pão que o diabo amassou. Tudo isso por causa de uma ligação pessoal dele com Getúlio Vargas, relação que acabou sendo herdada, posteriormente, por Jango e Brizola.

Segundo Lôndero, Lupicínio, que já era um compositor consagrado em 1950, fez um jingle para a volta de Getúlio Vargas, com aquela marchinha de carnaval de Haroldo Lobo, que foi também gravada por Francisco Alves:

Bota o retrato do velho outra vez
Bota no mesmo lugar
o sorriso do velhinho
faz a gente trabalhar".

Pede deferimento

Vargas já gostava das músicas de Lupicínio antes de ele ser sucesso nacional. Por isso, decidiu bancar a entrada do compositor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Lupicínio, que havia cursado só até o 3º primário, foi nomeado bedel da Faculdade de Direito, onde trabalhou também como porteiro.

Um belo dia - conta Lôndero - Lupicínio caiu na farra, virou a noite e saiu direto dos bares para a Universidade. O reitor deu um flagrante nele, quando o encontrou bêbado na portaria. Deu-lhe um esporro, publicamente, humilhando-o na frente de alunos, professores e colegas. No dia seguinte, Lupicínio entrou com um requerimento com letra de samba, que seu filho sabe de cor:

Magnífico Reitor,
que a tua sabedoria e soberba
não venha a ser um motivo
de humilhação para o teu próximo.
Guarda domínio sobre ti
e nunca te deixes cair em arrogância.
Se preferires a paz definitivamente,
sorri ao destino que te fere.
Mas nunca firas ninguém.
Nestes termos, pede deferimento.
Assinado: Lupicínio Rodrigues, porteiro.

Não sabemos se o reitor deferiu o requerimento e a partir de então passou a sorrir ao destino sem ferir ninguém. O certo é que Lupicínio deixou o emprego na Universidade e foi cantar em outra freguesia, em bares, restaurantes e churrascarias, onde aliava trabalho com boemia.

Foi ele, Lupicínio, quem compôs o hino tricolor do Grêmio, do qual era um fanático torcedor, ganhando com isso um retrato no salão nobre do clube.

Depois do suicídio de Vargas, em 1954, Lupicínio, já consagrado nacionalmente, continuou mantendo relações amistosas com Jango e Brizola, que também admiravam sua música. Por conta disso, foi preso e torturado, segundo seu filho.

Autor de grandes sucessos como “Felicidade foi se embora”, “Vingança”, “Esses moços”, “Nervos de aço”, “Caixa de Ódio”, “Se acaso você chegasse”, “Remorso” e dezenas de outros, Lupicínio compôs “Calúnia”, cuja letra pode muito bem ter outra leitura, quando sabemos de sua prisão e a forma como foi feita:

Você me acusa
Mas não prova o que diz
Você me acusa
De um mal que eu não fiz
A calúnia é um crime
que Deus não perdoa
Você vai sofrer
aqui neste mundo.

A letra de “Calúnia”, gravada por Linda Batista em 1958, termina com Lupicínio rogando:

Eu não quero vingança
A vingança é pecado
Só a Justiça Divina
Pode seu crime julgar.

Mas se prevalecer a letra de “Vingança”, cantada também por Linda Batista e depois por Jamelão, os torturadores da ditadura não terão paz e serão punidos pela Justiça:

Você há de rolar
como as pedras que rolam na estrada,
sem ter nunca um cantinho de seu
pra poder descansar.


José Ribamar Bessa Freire* é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti. Desenvolve pesquisas na área de História, com ênfase em História Social da linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: memória, literatura oral, patrimônio, fontes históricas, história indígena,Amazônia, línguas indígenas. Escreveu e organizou vários livros, entre os quais Rio Babel - a história das línguas na Amazônia (2004-1a. edição, 2010-2a. edição), Línguas Gerais - Política Linguística e Catequese na América do Sul no Período Colonial (2003), Os Aldeamentos indígenas do Rio de  Janeiro(2009 - 2a. edição), Os índios em Arquivos do Rio de Janeiro (1995-1996) e A Amazônia no período colonial (2008 - 7a. edição) , além de capítulos de livros e artigos em revistas especializadas no Brasil, Perú, México, Venezuela, França, Alemanha, Itália e Japão. Mantém coluna semanal em jornais do Amazonas desde 1984 aos dias de hoje.


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