Brasil: A violência tem cara adolescente

São Luis, 01/08/2007 – A maioria tinha entre 15 e 16 anos de idade quando formaram a gangue "A falta de Deus", nome escolhido porque "éramos todos anti-Cristo". De seus 25 membros, 10 estão mortos e 14 presos. "Só restou eu em liberdade", conta Elias da Silva, agora com 22 anos. Os violentos grupos juvenis que proliferaram desde os anos 90 em São Luis, capital do Maranhão, revelam parte de seu caráter e suas crenças nos nomes escolhidos para se identificarem: "Mensageiros do inferno", "Kemadores", Noturnos terríveis", Organizadores da mente", "Patos loucos".

 

 

O grupo de Silva não se compunha apenas de homens, pois também tinha cinco moças, das quais duas estão mortas. Dispunham de poucas armas de fogo, mas também usavam facas e facões em seus roubos e nas brigas contra gangues rivais que causaram 10 mortes entre os seus companheiros e não se sabe quantas do lado inimigo. "Eu mesmo recebi uma facada na barriga e tive de ficar muitos dias no hospital", confessou. Os grupos de adolescentes, como forma de socialização às vezes agressiva, são comuns nas grandes cidades do Brasil, mas não com o grau de violência e criminalidade que adquiriu em São Luís, um fenômeno semelhante às gangues da cidade colombiana de Medelín que tiveram seu apogeu nos anos 80 e 90, em uma proporção incomparavelmente mais maciça e sangrenta.

A crueldade e as disputas territoriais são semelhantes. Houve casos de inimigos esquartejados para que as partes de seus corpos fossem enterradas "em meio a uma euforia ritual, com bebidas e drogas", recordou Silva. "Tínhamos planos de dominar parte do bairro, Vila Bessa", onde o grupo tinha uma casa como sede, "às vezes com apoio de traficantes de drogas". Aparentemente esses bandos diminuíram nos últimos anos, mas a Delegacia do Adolescente Infrator de São Luís registrou 329 delitos no primeiro semestre deste ano, dos quais 23 foram homicídios. Na maioria dos casos não havia adulto orientando ou liderando os jovens, distinguindo-se do narcotráfico e de outros tipos de máfias.


Os motivos de rebeldia e adesão a um grupo são variados, "muitos passam a viver nas ruas por causa dos maus-tratos na família", conta Silva, que nasceu em Brasília e logo foi "abandonado na porta de um hospital". Estava há 14 anos em um orfanato quando o pai apareceu para levá-lo para São Luís. O rapaz nunca conheceu a mãe nem sabe seu destino. O pai bebia muito, batia nele e uma vez o induziu a se embebedar até que sofreu coma alcoólico, disse Silva, que teve uma madrasta, cujo paradeiro também ignora, e uma irmã mais nova que foi entregue a uma mulher que desapareceu. Só lhe restou o caminho das ruas e das gangues.

Depois de várias detenções e de ter sido torturado pela polícia, após passar fome nas ruas e cair no consumo de todo tipo de droga e ficar extremamente fraco, Silva se convenceu de que devia "tomar outro caminho". As mudanças vieram gradualmente. Matraca, uma agência jornalística que promove os direitos da infância, o convidou, por suas qualidades de liderança, a participar da Rede Sou de Atitude, de jovens organizados em quase todo o país para reclamar e acompanhar as políticas públicas em favor da infância e da adolescência. "Descobri uma nova maneira de viver", reconheceu.

Silva também foi salvo por uma atenção especial que recebeu por parte da Fundação da Criança e da Adolescência (Funac), o órgão oficial de guarda de crianças abandonadas e de "internação" de infratores menores de 18 anos para sua recuperação através de "medidas sócio-educativas". A Funac, uma instituição cujo nome varia de Estado para Estado, em geral é vista como uma entidade que fracassa em sua missão, sendo alvo de denúncias de maus-tratos e de onde são freqüentes as fugas e as revoltas dos internos. Aos 18 anos, Silva ficou fora dessa assistência social. "No Brasil não há políticas para a juventude". Lamenta Marcelo Amorim, coordenador da Matraca. Assim, Silva foi internado na Fazenda Esperança, em Coroatá, a 250 quilômetros de São Luís.

Trata-se de um centro rural mantido pela Igreja Católica para a recuperação de viciados. "Cheguei lá pesando cerca de 50 quilos, e hoje peso 98", disse Silva, excepcionalmente alto para a população local com seus 1,85 metro. Depois de quase três anos de tratamento e desde então contando sua experiência em um grupo de ajuda mútua em São Luís para afastar outros jovens da droga, este rapaz não quer voltar a um passado de "tanto sofrimento". Mas enfrenta o risco do desemprego, já que trabalha em uma empresa próxima da falência. Com os estudos interrompidos na sexta série do ensino fundamental, não lhe é fácil conseguir trabalho.

Mas há outra ameaça, que parece coisa do passado diante do fim de sua gangue. "Tínhamos um pacto de não sair", a deserção era punida com a morte, e "eu fui o único que saiu", contou. Porém, os grupos continuam aparecendo em São Luís e a quantidade de adolescentes envolvidos não parece ter diminuído nos últimos anos, segundo Ana Carolina Alves, assistente social que escreveu um artigo baseado em notícias da imprensa sobre os grupos juvenis, como trabalho final para sua graduação no ano passado. Sua avaliação também se baseia na experiência obtida em seu trabalho no Ministério Público, onde observou a grande quantidade de adolescentes de bairros periféricos envolvidos nos crimes. Não há pesquisas nem dados mais amplos e precisos sobre o assunto, lamentou Carolina.

Entretanto, esses grupos diminuíram nos bairros onde são realizadas ações com essa finalidade, admitiu a assistente social. Isso aconteceu em Coroadinho, conhecida com uma das zonas mais violentas de São Luís, o que justificou a prioridade que lhe deu a Secretaria Estadual de Segurança Cidadã em sua nova forma de atuação, segundo planos locais definidos em diálogo com a comunidade, representada por um Conselho de Defesa Social. Coroadinho, chamado de "Pólo" por reunir 17 comunidades pobres que somam cerca de 75 mil habitantes, comemorou em junho quatro meses sem assassinatos.

Boa parte da redução da violência no bairro pode ser atribuído ao Projeto Paz Juvenil, coordenado por Claudett Ribeiro, uma educadora e gestora do não-governamental Instituto de Infância (Ifan). Sua atuação no local começou no final de 2004, quando uma pesquisa identificou nove grupos juvenis que se dividiam por comunidades ou ruas do Pólo. O projeto promoveu seminários, outras pesquisas, cursos e um concurso literário, envolvendo como protagonistas os mesmos adolescentes dos grupos violentos organizados. Em pouco tempo se comprovou que havia possibilidade de superar o estado de violência no bairro, com o novo enfoque do problema, sem dar-lhe um caráter policial e dando voz aos jovens acima de preconceitos contra o "banditismo".

As quantidades de brigas entre gangues juvenis em Coroadinho, que somaram 226 no primeiro semestre de 2004, caíram para 10 no primeiro semestre deste ano, segundo estudos do Ifan baseados em registros da Polícia Militar. O bairro continua "muito violento, mas melhorou bastante nos últimos dois anos", reconheceu uma comerciante local, que vive ali há 15 anos e preferiu dar apenas seu primeiro nome, Cristina. É que agora há mais policiais, existem as ações sociais, "principalmente a de Claudett Ribeiro", que são excelentes, mas em pequena escala, afirmou.

A mesma avaliação faz o sargento França, há 20 anos na PM e morador de Coroadinho, para quem as drogas são a principal causa da delinqüência juvenil, agravada pela gravidez precoce de adolescentes e pela escassez de escolas e áreas de lazer, tudo o que "leva os jovens para a rua". Outras várias iniciativas, como maior presença policial, ações comunitárias e um centro de capacitação profissional contribuíram para reduzir a criminalidade em Coroadinho, mas o Projeto Paz Juvenil foi o único a envolver diretamente os jovens integrantes de grupos, atores que preferem se manter "invisíveis", afirmou Ribeiro.

A atividade de maior impacto do projeto foi o "Atelier da escrita", que promoveu palestras e concursos de contos, poesia e versos de hip-hop, permitindo ao jovem se expressar, refletir coletivamente, melhorar sua auto-estima e as relações interpessoais. A maioria dos participantes integrava gangues ou estavam em seu raio de influência. A partir dos concursos, dos quais participaram 68 jovens, surgiu a Revista Literária Portal de Coroadinho, publicada por decisão dos próprios membros do Atelier, que também promoveram uma campanha de coleta de lixo na comunidade e uma pesquisa sobre brincadeiras tradicionais.

O resultado mais promissor, segundo Ribeiro, é a recém-criada Associação de Jovens Voluntários da Paz, onde eles assumem seu destino. O primeiro presidente da associação, Marcos Santana da Silva, pretende primeiro que os jovens se conheçam uns aos outros, superando as fronteiras dentro do próprio bairro impostas pelas gangues. Depois, comprometeu-se a "abrir perspectivas" de trabalho, promovendo cursos e eventos culturais e esportivos. Santana, premiado nos concursos literários do projeto, garante que não caiu na "armadilha da violência", mas tanto ele quanto seu companheiro da Associação, José Ribamar Mendes, têm amigos que "se perderam" ou foram mortos a tiros ou com facões. Mendes descarta as festas desde que em uma delas foi alvo de uma pedrada que deixou uma cicatriz em seu rosto.

O Projeto Paz Juvenil atuou diretamente junto a cerca de mil crianças e adolescentes, mas propõe uma alternativa comunitária, com efeitos preventivos e impulsionada pela energia dos próprios jovens,para que o resgate não seja tão solitário e sofrido como o de Elias da Silva. (IPS/Envolverde)

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