Ato público dos povos do xingu contra Belo Monte, em frente ao Congresso e no Palácio do Planalto, Brasília.
A cena condensa uma dimensão que Belo Monte poderia ter: um divisor de águas para pessoas que até aqui apoiaram os governos do PT, ou o disparador de debates urgentes sobre os rumos dos governos petistas e da esquerda brasileira em geral. Ao invés disso, contudo, o que se deu em torno de Belo Monte, ou da revolta no canteiro da usina de Jirau em março, foi uma não discussão encaixotada em dicotomias simplistas (desenvolvimento versus meio ambiente, interesse nacional versus ambientalismo) e artifícios retóricos pré-fabricados (o complô internacional para impedir o Brasil de crescer). É necessário, portanto, entender o que é que bloqueia esse tipo de debate, cada vez mais urgente, para que ele possa finalmente acontecer.
A herança desenvolvimentista
Desde seu surgimento, nas décadas de 1930 e 1940, o nacional-desenvolvimentismo foi, na América Latina, o centro de um espectro muito amplo de forças políticas. Uma das características do fenômeno do populismo histórico (não confundir com o uso vago, normalmente pejorativo, que o termo tem hoje) era exatamente sua capacidade de manter-se a cavalo sobre interesses contraditórios. Sua operação central consistia em fazer “desenvolvimento nacional” significar um pouco de tudo, um pouco para todos. O ciclo de governos militares na região, iniciado com o golpe civil-militar de 1964, pode ser compreendido como o momento em que essas contradições tornaram-se intensas demais para que o centro se mantivesse, forçando uma decisão entre projetos nacional-desenvolvimentistas de esquerda (reformismo radical) e direita (modernização conservadora).
A ascensão de governos progressistas na região na última década é, num certo sentido, uma retomada daquele momento – uma oportunidade, em conjuntura muito distinta, de recuperar o caminho então violentamente bloqueado. Este é, evidentemente, o caso em termos geracionais: presidentes como Dilma Rousseff e o uruguaio Pepe Mujica, mesmo como jovens revolucionários de ontem, eram formados politicamente pelo “consenso” nacional-desenvolvimentista.
É sintomático que Belo Monte tenha sido idealizada pela primeira vez pelo regime militar, como parte da política do “Brasil Grande” dos anos 1970 – um programa de desenvolvimento dirigido pelo Estado e puxado por projetos gigantescos como a Transamazônica, sumidouro de dinheiro e homens, até hoje inacabado. “Desenvolvimento”, aqui, queria dizer planejamento centralizado e um ideal de domínio completo sobre a natureza, entendida não como meio, mas unicamente como obstáculo e recurso para um “crescimento” pensado apenas quantitativamente. “Nacional” significava a gestão da natureza e das pessoas como variáveis a serem manipuladas à revelia – principalmente, é claro, os pobres, os camponeses e os indígenas – em nome do “interesse nacional”. Mas havia mais. A capacidade do Estado de dobrar tudo e todos à sua vontade tinha como fundamento, em última instância, o poder de aplicar essa vontade a qualquer custo; e o modelo era altamente concentrador de renda, levando riquezas vertiginosas às mãos de uns poucos grupos econômicos, enquanto os salários da maioria eram mantidos baixos à força.
Com o PT no poder, o Brasil viu seu primeiro período de crescimento econômico continuado desde os anos 1970. Isso, mais um tino especial para a política externa, fizeram dele uma presença importante na cena internacional, elevando o otimismo de que o Brasil finalmente realizará sua eterna promessa de “país do futuro”. Mais do que isso, isso se fez distribuindo (embora não redistribuindo) renda e com uma performance respeitável na ampliação do acesso a direitos fundamentais. O “desenvolvimento nacional” não somente voltou à pauta, como dessa vez parece funcionar.
É de se entender, então, que quem apoia o governo, assim como os eleitores para quem as coisas “nunca estiveram tão bem”, pense que, por mais triste que seja a perda de 60 mil hectares de floresta amazônica e o deslocamento de 40 mil pessoas, a construção de Belo Monte é uma necessidade de interesse nacional. Ou, como disse o representante da CUT, Vagner Freitas, que visitou Jirau após a revolta: “tem de voltar a trabalhar. Eu sou brasileiro, quero ver essa usina funcionando”. Agora que o país está crescendo, ele não pode parar; para não parar, ele precisa de energia; essa energia tem que vir de alguma parte; por piores que sejam as condições do trabalho que a produz, ele não apenas é trabalho (melhor que desemprego), como é essencial ao país. É o interesse dos muitos acima do interesse dos poucos. O pragmatismo racional acima do idealismo romântico.
Onde está o problema
O problema é que aquilo que se questiona num projeto como Belo Monte é justamente sua racionalidade. A capacidade instalada de 11GW, que a põe como terceira maior hidrelétrica do mundo, não será efetiva na maior parte do ano; em média, Belo Monte produzirá 39% disso. Analistas sugerem que seu custo, atualmente estimado em R$ 20 bilhões, pode crescer em 50% até o fim das obras. Quem arcará com o ônus será essencialmente o BNDES, um banco público, já que a iniciativa privada considera a obra demasiado arriscada e imprevisível para investir. Como aponta o professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP) e ex-assessor do Ministério de Minas e Energia, Célio Bermann, seriam necessárias mais quatro usinas na região, bem como um repasse do custo da energia produzida para o consumidor final, para garantir a viabilidade energética e econômica da obra.
Ainda assim, argumentaria o desenvolvimentismo progressista, opor-se à produção de mais energia é opor-se à ascensão dos pobres brasileiros, que se reflete num crescimento do consumo. Além disso, a energia de Belo Monte é a mais limpa e barata que se pode produzir.
Há dois problemas nisso. O primeiro é como se calcula o que constitui uma energia “limpa” e “barata”; voltaremos a ele depois. O segundo é que a energia de Belo Monte se destina principalmente não ao consumidor, mas a indústrias de alto consumo elétrico na região, como mineração e alumínio. Isso implica mais desmatamento e deslocamento de pessoas no futuro, expandindo a fronteira de destruição da floresta e aumentando a incidência de problemas como prostituição, tráfico de drogas e matança de indígenas e camponeses – justamente na região mais frágil do país em matéria de provisão de serviços públicos. Mais do que isso, implica a reprodução e o reforço de um modelo altamente concentrador de renda, de baixa geração de empregos, alto custo ambiental e humano, e que reafirma a posição do Brasil no mercado internacional como exportador de produtos primários de baixo valor agregado.
Essa tensão existe desde o início da onda de governos progressistas na América Latina: os avanços sociais e políticos da última década tiveram como condição o boom das exportações primárias. Na maioria dos casos, isso significou tanto um retorno aos antigos sonhos de uma modernização veloz, centralmente planejada, como um compromisso entre um crescimento da presença estatal na economia e um enorme fortalecimento de grandes grupos econômicos, como na mineração e no agronegócio. Trata-se, por um lado, de uma questão de oportunidade política (os empresários ganham vantagens enquanto os governos ganham sustentação) e econômica (a vantagem comparativa de países de economia primarizada num período de alta internacional desse mercado). Trata-se, por outro, de corrupção. Não necessariamente no sentido de ilegalidade, porque afinal, a corrupção que acontece dentro da legalidade é o problema mais sério de todas as democracias; por exemplo, aquela que faz com que alguns dos maiores interessados em obras como Belo Monte, Jirau e as da Copa do Mundo, estejam, também, entre os principais financiadores de campanhas eleitorais: as empreiteiras. Mas é, por último, a marca de uma mutação dos genes desenvolvimentistas durante o período da hegemonia neoliberal, quando a esquerda partidária passou a entender que aquilo que a diferenciava da direita era o tipo de capital que cada uma prioriza – o produtivo nacional, ao invés do financeiro internacional. É essa mutação que explica o comunismo transgênico de um Aldo Rebello, esforçando-se em aprovar uma reforma do Código Florestal construída diretamente por e para o agronegócio: o momento em que o desenvolvimentismo de esquerda passa a chamar de interesse nacional aquilo que é interesse do capital nacional.
A questão é: se a atual ênfase em “ser grande” – evidenciada nos megaprojetos, mas também na política do BNDES de investir na criação de “campeões brasileiros” (transnacionais em setores como alimentos e mineração) – significa reforçar a fórmula de “crescer” na esteira desses grandes grupos econômicos, não se está pondo o país num rumo que, no longo prazo, acabará desfazendo o que se conquistou na última década?
O ambiente é uma questão social
A postura do Brasil nas negociações climáticas tem sido, com frequência, amplamente elogiada – embora se possa discutir se isso não seria mais por demérito alheio que por mérito próprio. Um dos pilares da posição brasileira é o princípio fundamental de justiça ambiental segundo o qual aqueles países com maior histórico de emissões têm que arcar com o grosso da redução de emissões de gases de efeito estufa. Com isso, os países em desenvolvimento teriam espaço de manobra para industrializar-se, desenvolver sua infraestrutura e crescer – presumivelmente, erradicando sua pobreza doméstica nesse processo.
Não é a opção por “crescer” o que preocupa na maneira como Belo Monte parece ter virado questão de honra, e que se mostra na forma como sistematicamente atropelou-se a legislação ambiental e as manifestações da população local para começar as obras o mais rápido possível, como que para encerrar o assunto com um fato consumado. Quem pode estar contra o Brasil “crescer”, se isso significa expansão de direitos, melhora dos padrões de vida, justiça social? O que preocupa é que o foco em megaprojetos como Jirau, Belo Monte e Copa parece sinalizar uma opção: a escolha por um modelo de desenvolvimento que é não só ambientalmente mais agressivo, mas mais concentrador de renda e socialmente mais violento.
É aí que se encontra o verdadeiro debate, que se tenta sistematicamente reduzir ao simplismo das escolhas entre “crescer” ou “não crescer”, “desenvolver” ou “não desenvolver” – como se existisse apenas uma maneira de crescer, apenas um tipo de desenvolvimento. Cria-se, com isso, uma chantagem, onde ou se está do lado do “desenvolvimento” e do “interesse nacional” e, portanto, de uma política progressiva, ou se está contra. (Nas suas versões mais paranóicas – e paródicas – essa lógica só consegue ver, nas preocupações ambientais, um complô internacional contra o Brasil.)
Justiça seja feita, o “ambientalismo” tem uma parcela de culpa nisso: a incapacidade histórica de desenvolver seja uma base, seja um discurso social; a troca das questões estruturais, onde exploração do ambiente e das pessoas são indissociáveis, pelo efeito fácil do oportunismo midiático; a pretensão a uma posição supostamente “suprapolítica” (porque moral); o reducionismo que pensa o ambiente apenas como elemento não humano a ser “preservado”. Tudo isso pode servir apenas para quem pretende manter-se apenas no nível das mobilizações esporádicas, baseadas no mínimo denominador comum de um moralismo despolitizado – normalmente usadas como trampolim para legitimar negociações de gabinete norteadas pelo “pragmatismo” mais rasteiro. Felizmente, contudo, a amplitude dos desafios atuais faz cada vez mais pessoas verem a necessidade de ir além desse “ambientalismo de resultados” (ou “de mercado”) em direção à constituição de um movimento por “justiça ambiental” – construído junto às populações mais afetadas pela distribuição desigual dos impactos e das vantagens de um modelo de desenvolvimento unicamente quantitativo, e fazendo da questão ambiental um intensificador (não um substituto) da crítica social.
O que a renovada paixão desenvolvimentista pelos megaprojetos delineia de forma clara é, justamente, como o meio ambiente é, antes de tudo, uma questão social. O “crescimento” trazido pela Copa ou pelas grandes hidrelétricas é feito em nome dos pobres: energia para acompanhar o aumento do poder de compra, geração de emprego e renda, melhorias de infraestrutura. Mas ele acontece às custas de quem? Quem são as comunidades removidas para que a terra que ocupam há décadas seja entregue a especuladores privados, que as transformarão em residências e espaços comerciais onde os antigos moradores não poderão entrar? Quem são os milhares que atravessam o país para ir a Jirau, sujeitar-se a condições ilegais e humilhantes, enquanto as construtoras se escoram no argumento de que o PAC não pode parar para aumentar custos e “flexibilizar” as relações de trabalho e o cumprimento de condicionantes socioambientais? Quem são os outros milhares removidos pela alagação (em Altamira) ou perda de vazão (Volta Grande do Xingu) causadas por Belo Monte – aqueles que já estão sofrendo o impacto da chegada dos que vêm de fora (aumento de aluguéis e preços, escasseamento dos serviços públicos, criminalidade) sem que as obras de infraestrutura previstas como condicionantes tenham sequer se iniciado? Enquanto ficamos no âmbito dos números – tantos bilhões de investimento, tantos megawatts produzidos –, o que desaparece é a maneira como esse “crescimento” distribui benesses e prejuízos de maneira desigual.
Com efeito, ao mesmo tempo que acusa as preocupações ambientais de menosprezarem a dimensão humana, a defesa nacional-desenvolvimentista de Belo Monte emprega a mesma lógica para falar de energia “limpa” e “barata”. Tecnicamente, a energia hidrelétrica não é tão limpa quanto se pensa: as represas têm emissões altas de CO2 e metano, gás que tem um efeito de aquecimento 25 vezes maior que o CO2, em virtude da matéria orgânica que apodrece sob a água. Mas, mais importante, um projeto como Belo Monte só pode ser dito “limpo” e “barato” porque se deixa fora do cálculo o seu impacto sobre a fauna, a flora e as pessoas que vivem na ou se mudam para a região – pobres e indígenas, inclusive tribos isoladas. (Como se sabe, no imaginário brasileiro, a única população com cotação abaixo dos pobres são os indígenas.) Se o debate não se desse numa perspectiva que normaliza a ideia de que alguns paguem caro pelo bem-estar de outros – por exemplo, os indígenas que terão seus modos de vida e territórios ancestrais destruídos em favor da indústria eletrointensiva –, poder-se-ia discutir o “custo” integral de um projeto como Belo Monte, ou desse modelo de desenvolvimento. Que fique claro: quando gente da própria esquerda fecha os ouvidos para questionamentos sobre a necessidade de transformar a matriz produtiva nacional, ou de investir em eficiência energética e outras fontes de energia para reduzir o aumento da demanda, é essa lógica de normalização da desigualdade que estão aceitando.
A essa lógica se convencionou dar o nome de injustiça ambiental. Ela se reproduz tanto nas dinâmicas nacionais (um grupo ou região pagando caro pelo desenvolvimento de outros) quanto nas internacionais (alguns países pagando pelo alto padrão de consumo de outros). Quando a esquerda usa a defesa do interesse nacional para desqualificar qualquer debate ambiental, incorre em duas grandes ironias e um grande erro. A primeira ironia consiste em não ver que o mesmo princípio que invocam internacionalmente (“quem destruiu seu meio ambiente não tem direito a nos dizer que não podemos nos desenvolver”) contradiz as implicações internas daquilo que pregam (fazer os mais pobres pagarem por todos, principalmente pelos mais ricos). A segunda está em não ver que, enquanto esse “desenvolvimento” se dá em cima do extrativismo primário e de indústrias poluidoras, de baixa geração de emprego e baixo valor agregado, ele reforça uma divisão internacional do trabalho onde o Brasil entra, precisamente, como quem assume um passivo ambiental e social que os países desenvolvidos não querem mais para si.
O grande erro está em tratar como bens nacionais e infinitos aquilo que é, no final das contas, global e finito. O efeito estufa, as mudanças climáticas, os desastres ambientais e suas consequências sociais não conhecem fronteiras. Assim como o esgotamento dos recursos naturais, a partir de certo ponto não podem nem ser revertidos, nem financeiramente compensados: não podemos comprar mais petróleo, por exemplo, depois que ele acaba; tampouco um outro planeta, quando este estiver muito usado. Usar a justiça ambiental como desculpa para não encarar a necessidade de repensar o conceito e modelo de desenvolvimento que temos é fazer como o sobrevivente de um desastre que, vendo que os demais sobreviventes consumiram seus próprios víveres, se pusesse a comer os seus – anunciando, de boca cheia, que ninguém tem autoridade para criticá-lo.
Nenhum dos oponentes de Belo Monte com quem conversei até hoje deixa de reconhecer o que se conquistou na última década, ou deseja que o Brasil volte a ser a terra do potencial não realizado. Eles falam de uma matriz produtiva e energética mais diversificada e descentralizada, de um desenvolvimento mais igualitário e sustentável. Eles perguntam por que, se a democracia participativa é um dos orgulhos de nosso atual “jeito de governar”, não se faz uma Conferência Nacional de Energia para que sociedade, governo, especialistas e agentes econômicos possam debater esses temas. Eles dizem que, mais que fazer o “melhor possível” dentro “das condições dadas”, o que esperam é uma política que trabalhe para gradualmente transformar as condições dadas e criar novas possibilidades.
Porque a discussão de fundo, aqui, não se resume a uma decisão simples, um mero sim ou não. A questão é que tipo de “grande” o Brasil quer ser – ou o que ele quer ser quando crescer.
* Rodrigo Guimarães Nunes é filósofo.
** Publicado orignalmente no site Amazônia.org.br.
(Amazônia.org.br)