Há um verdadeiro exército publicitário trabalhando ininterruptamente para convencer as crianças a comprar toda sorte de produtos.
Enquanto milhares de pais e mães vão freneticamente às compras para adquirir os presentes “encomendados” pelos filhos, poucos deles sabem que está em discussão, no Brasil e no mundo, a problemática relação infância-consumo e a questão da publicidade dirigida ao público infantil.
Quanto a este último tema, aliás, existe um projeto de lei em Brasília que visa coibir esse tipo de publicidade, cuja existência parece ser “natural” para muitos e até desejada por aqueles que, no lugar de pais, exultam com a simples perspectiva de seus filhos aparecerem como garotos propaganda ou que, no lugar de empresários, antevêem gordos lucros graças a esse amplo espectro de jovens consumidores.
À guisa de fio condutor do presente artigo, tomemos a questão da publicidade dirigida ao público infantil, pois ele nos levará necessariamente à questão da relação infância/consumo.
São dois os objetivos básicos da publicidade: 1) informar que tal produto ou serviço existe com tais e tais qualidades, e 2) convencer o virtual consumidor a adquiri-lo. Dos dois objetivos, o segundo é o mais importante e é em torno dele que inúmeros especialistas de marketing queimam as pestanas. Mas vale notar que o primeiro, não raramente, limita-se à mera informação de que um produto existe, pois nada se diz a respeito de suas qualidades. Acontece, por exemplo, em várias propagandas de carro, nas quais o veículo é mostrado em cenas idílicas, sem que nada de objetivo se fale sobre suas virtudes. Se nada falam do automóvel, em compensação sugerem que seu virtual comprador tem ou terá determinado tipo de identidade, em geral associada ao status de pessoa feliz, pois “vencedora”. Mas tal associação já é a tradução do segundo objetivo: seduzir o consumidor.
Isto posto, espera-se de um adulto que tenha recursos intelectuais e afetivos para resistir à sedução publicitária, notadamente quando essas fogem totalmente a qualquer verossimilhança com a vida real. Mas qual será o poder de resistência de uma criança?
Ele é naturalmente menor. A criança carece, em parte, de critérios para avaliar se os brinquedos que ela vê, sabiamente fotografados ou filmados terão, na prática, as qualidades lúdicas apresentadas. Com freqüência, uma vez que tem o brinquedo nas mãos, ela fica desapontada e o abandona no baú dos objetos rejeitados ou esquecidos.
A criança também carece de critérios próprios para avaliar se cada objeto corresponde ao que ela realmente desejaria: suas vontades ainda costumam ser fugazes e, logo, facilmente dirigidas por especialistas em sedução. Outra vez aquilo que é intensamente querido num dado momento, logo cai no esquecimento, trocado por outra coisa eleita como alvo prioritário do desejo momentâneo. Finalmente, também devemos lembrar que a criança ainda é muito suscetível à influência de “celebridades”. Não é por acaso que se contratam “ídolos” para cantar as vantagens de variados produtos e se estampa seu rosto e nome nas embalagens ou até nos próprios produtos.
Em suma, existe um verdadeiro “exército simbólico” que adentra as defesas psíquicas ainda frágeis das crianças, para convencê-las a comprar isto e aquilo. Portanto, têm toda a razão as pessoas que querem, no limite do possível, protegê-las. E têm toda a razão, também, as pessoas que lamentam que, em tempos de Natal, o simpático Papai Noel tenha se transformado, de portador de esperanças e surpresas, em mero entregador de encomendas.
Sigamos adiante em nossas observações e notemos que, para além dos problemas que a suspeita sedução publicitária dirigida a crianças levanta, sua própria existência equivale a um forte incentivo ao consumo.
Vivemos numa sociedade que se convencionou chamar de sociedade de consumo, e, é claro, dela participam as crianças. Não poderia ser diferente e não se trata, portanto, de isolá-las do mundo, como o fez hipoteticamente Rousseau com Emile. Todavia, trata-se de prepará-las para serem consumidores conscientes. Mas, o que significa isso?
Significa, por exemplo, fazê-las paulatinamente compreender as relações entre consumo, trabalho e economia, para terem consciência do real valor das mercadorias e não pagarem, como o fazem tantos adultos de conta bancária abastada, preços claramente abusivos somente porque determinados produtos são vendidos em tal lugar ou produzidos por tal marca. E também para terem consciência dos graves problemas de distribuição de renda, que dão o luxo a poucos e o lixo a muitos. Há, no Brasil, uma proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais que propõe trabalhar, desde o ensino fundamental, o tema “Trabalho e Consumo”. Trata-se de excelente iniciativa, infelizmente pouco conhecida.
Significado psicológico
Como é impossível desvincular o consumo da saúde ambiental de nosso planeta, ser consumidor consciente significa também avaliar as consequências de seus atos de compra e usufruto. Dizem os especialistas que se todos tivessem o modo de vida dos habitantes dos Estados Unidos, seriam necessários quatro ou mais planetas Terra para contemplar a demanda.
E ser consumidor consciente é também avaliar o significado psicológico do ato de consumir, ato esse que, sabe-se, é para muitos, na contemporaneidade, um ato frequentemente desvinculado de necessidades concretas, materiais. E aqui o tema se torna complexo e delicado.
Muitos já estudaram e analisaram os motivos que levam as pessoas a se entregarem a uma verdadeira bulimia de consumo. Há várias teorias, todas certamente com sua parte de verdade. Pessoalmente, me inclino a ver no afã de consumir um traço do que chamei de “cultura da vaidade”(1), pois faz todo sentido o seguinte diagnóstico de Jurandir Freire Costa: “O objeto (que é consumido) deve ‘agregar’ valor social – e não sentimental – a seu portador, ou seja, deve ser um crachá, um passaporte que identifica o turista vencedor em qualquer lugar, situação ou momento da vida”(2). Consome-se, entre outros motivos, para poder dar um “espetáculo de si”, para demarcar-se, para parecer (ou mimar) os “vencedores” e as “celebridades”. E isso não vale apenas para as classes sociais financeiramente abastadas, pois, como escrevem os autores do livro Cabeça de porco: “O dinheiro obtido no assalto troca-se pelo tênis de marca, pela camisa de marca. Essa frivolidade é uma pista. A camisa com nome e sobrenome e o tênis notabilizado pelo pedigree apontam numa direção: a grana vai para a marca, não para o calçado ou a camisa, não para o atendimento a necessidades físicas, como a simples proteção do corpo e dos pés. No caso, o que está em jogo é a busca de reconhecimento e valorização, a marca é o que importa, é a marca o objeto cobiçado, é ela que atende à necessidade. O vestuário (na moda) cumpre essa função: quem o consome deseja diferenciar-se para se destacar”(3).
Um desenho humorístico, assinado por Voutch e publicado na revista francesa Le Point, ilustra bem, a meu ver, um aspecto essencial do consumismo atual. Nele vê-se um homem com certo ar de dúvida contemplando, numa revendedora, um desses carros altos e poderosos, 4x4, que têm circulado muito pelas ruas e estradas, atualmente. O vendedor lhe apresenta um argumento “definitivo”: “a relação preço/arrogância é muito vantajosa!”.
Esperemos que nossos filhos, quando forem adultos, exijam ouvir argumentos mais decentes dos vendedores! Isso depende muito de nossas atitudes educativas. Mas quando vejo garotos e garotas, vestidos com roupa de grife, com tênis importado, celular de última geração na mão – como o iPhone –, câmera digital pendurada no pescoço etc., temo não estarmos na direção pedagógica correta.
E de pouco adiantarão leis que coíbam a publicidade dirigida ao público infantil, se os próprios adultos, entregues ao consumismo e à cultura da vaidade, forem às compras, motivados e seduzidos pela imagem que seus filhos, destinatários dos presentes natalinos, terão diante de outras crianças.
* Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
(1). Yves de La Taille, Formação ética: do tédio ao respeito de si, Porto Alegre, Artmed, 2009.
(2). Jurandir Freire Costa, O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, Rio de Janeiro, Garamond, 2004. O autor emprega o termo “turista” no sentido metafórico que lhe deu Bauman: a do homem pós-moderno, que deambula pelo planeta sem amarras e nem projetos de médio e longo prazo.
(3). Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde, Cabeça de porco, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005.
(Envolverde/Instituto Akatu)