Novamente vemos o Brasil face a face com um dos mais obscuros, torpes
e mal dissimulado absurdos da nossa sociedade: o preconceito racial.
E,
desta vez, junta-se ao preconceito racial o estigma social da
condição de pobreza. Sendo que, estatisticamente, uma mazela está
fortemente vinculada à outra.
A discussão das cotas parece ferir os interesses de alguns incomodados que, ao indignarem-se com as alegadas "benesses" concedidas aos membros das comunidades afrodescendentes (os quais representam a maior parte da camada mais carente da população, exatamente por conta de toda a construção histórica de uma sociedade estabelecida para perpetuar a dominação e a desigualdade), expõem a face mais cruel do afã dominante: a da manutenção da miséria social, cultural e educacional em que vive substancial parcela da camada social vilipendiada desde os tempos imperiais e pós-escravagistas.
Num País cujo déficit educacional e de formação se apresenta mais intensa e gravemente entre a população mais pobre (e nesta se inclui, majoritariamente, a população de origem negra) a rejeição ao sistema de cotas, que poderia ser apenas um debate sobre a eficácia ou não de sua implantação no Brasil, denuncia interesses obscuros.
A maioria do ensino de excelência brasileiro está nas universidades públicas federais ou estaduais como a USP, Unicamp, UFRJ e UNB, entre outras. São necessárias uma preparação de qualidade e, sobretudo, uma boa base de ensino fundamental e médio para concorrer-se em pé de igualdade com os vestibulandos que estudaram nos melhores (e mais caros) cursinhos, por uma vaga às vezes disputada por até 90 alunos.
Geralmente, os ensinos fundamental e médio são muito deficientes no Brasil e quem estuda em escola pública, em sua quase totalidade, é a população pobre (maioria de negros). Chega-se, portanto, ao quase absurdo de ocasionar uma espécie de “cota” inversa, com os egressos das escolas públicas de baixa qualidade sendo quase proibidos de entrar nessas universidades, por força do ensino precário que receberam.
Restam-lhes as universidades privadas, que cobram mensalidades abusivas. Então, os estudantes mais pobres e desassistidos só podem contar com seus méritos e esforços sobre-humanos para tentarem vencer uma competição em que já saem em desvantagem. Negar estas verdades ou minimizá-las é uma cruel hipocrisia
Assim, começa a via-crucis dos estudantes pobres de todas as etnias, brasileiros em busca do sonho de entrar numa faculdade, almejando um futuro profissional melhor.
Não se faz uma nação forte, igualitária e justa quando uma grande maioria que está apartada do acesso à Educação de boa qualidade.
Um dos frágeis argumentos contra as cotas é o de que estariam privilegiando uma classe (que sabidamente é e sempre foi desprovida de toda e qualquer condição de privilégio). Tendenciosamente, não leva em conta os dados estatísticos que comprovam de forma cabal a desigualdade secular sofrida por estas camadas, uma vez que, de todo o universo de ingressos em universidades públicas, apenas uma pequena percentagem é de cidadãos negros.
Alie-se a estes fatos a dificuldade que estas pessoas – por complicados mecanismos de exclusão econômico-social – têm para alimentar-se, vestir-se, adquirir os livros necessários, locomover-se até a faculdade (já que faltam condições econômicas adequadas, tudo o mais torna-se comprometido, inclusive o aproveitamento catedrático), e temos aí uma fórmula de fracasso anunciado. Essa imensa massa tende a ver frustrados seus esforços de obter uma melhor qualificação educacional e, conseqüentemente, profissional, ficando inferiorizada no mercado de trabalho e na sociedade como um todo.
Como, então, questionar a legitimidade e urgência da adoção destas políticas afirmativas, se apenas uma ínfima minoria desta enorme quantidade de pessoas consegue terminar o ensino médio? E, quando termina, não consegue adentrar o ensino superior. Escola fundamental no Brasil: para os ricos, a particular, é boa; e para os pobres, a pública, geralmente é péssima.
LUGAR DE NEGRO É NA UNIVERSIDADE
E ainda temos que ver reaparecer conceitos racistas e reacionários como as recentes pichações numa rua próxima à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conforme o Jornal Nacional da Rede Globo noticiou em 28/06/2007 (vide link http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL61177-5604,00.html) isto sim disseminando ódio racial com suas frases vergonhosas e criminosas, que infringiram a Lei nº 7.716 – art. 20, atentando contra os direitos humanos. O texto racista continha a seguinte frase "Lugar de negro é na senzala, e não em faculdade!"
A nossa resposta a este triste episódio é apenas outra frase: “lugar de negro é na universidade”.
Não seria necessária toda esta discussão, se nosso sistema político e social não houvesse aprofundado estas desigualdades ao longo dos séculos. Certamente os negros, pobres e todos os excluídos (independentemente da cor da pele) da justa distribuição das riquezas – concentrada em mãos de minorias despóticas e avessas à democratização das mesmas –,não precisariam passar pela humilhação de ouvir e ler afirmações patéticas como estas estampadas na universidade gaúcha. Como se fosse da índole de uma etnia de ancestralidade tão valorosa necessitar ou se comprazer com migalhas de bondade dos detentores do poder capital.
ONU SUGERIU AO BRASIL APLICAÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS
O "nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre." No dia 18 de novembro de 2005, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou um relatório sobre o desenvolvimento humano no Brasil que ratificou esta declaração.
Segundo o relatório, entre outros dados apresentados, o número absoluto de pobres no Brasil, com renda per capita inferior a R$75,00 no ano de 2000, diminuiu em 5 milhões entre os anos de 1992 e 2001; entretanto, os negros pobres, ao contrário da tendência, aumentaram em 500 mil.
Tais desigualdades, segundo o relatório, demonstram que a democracia racial no Brasil não passa de um "mito", sugerindo, ao final, a aplicação de ações afirmativas, incluindo o sistema de cotas, a fim de corrigir os danos causados pelo racismo no Brasil.
Um país como o Brasil, que sabe discriminar, deve saber também reconhecer seus discriminados.
Nos Estados Unidos, o sistema de cotas existe desde 1960. Ao longo de mais de 40 anos percebeu-se que as oportunidades melhoraram. As cotas americanas favoreceram a diminuição das diferenças entre negros e brancos e aumentou a entrada de afro descendentes no ensino superior. A interferência do estado, com a criação de políticas públicas e universais é importante para se incentivar o acesso nas universidades.
Os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Inglaterra e (recentemente) a França têm adotado políticas de cotas em universidades.
* Ismar Celestino de Souza ( Analista de Suporte )
Colaboraram Gil Soul (músico, poeta e estudioso autodidata das questões sociais brasileiras) e Celso Lungaretti (jornalista e escritor)