Genebra, Suíça, agosto/2010 – A recente sentença do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, que ordena ao Brasil a revisão de sua lei de anistia, representa um marco crucial na luta contra a impunidade em uma região que ainda precisa compreender plenamente, e enfrentar, as atrocidades cometidas durante vários dos conflitos internos nas últimas décadas.
As leis de anistia que ignoram intencionalmente as violações dos direitos humanos não só distorcem os registros históricos que cada país tem de formular como também minimizam o sofrimento das vítimas e diminuem seu direito de saber a verdade e obter uma reparação.
Os governos costumam justificar sua recorrência às leis de anistia gerais em nome de uma rápida conciliação, nacional ou regional. Contudo, a história mostra que eximir os autores da prestação de contas, ao mesmo tempo em que nega a justiça e a reparação às vítimas, provavelmente provocará novos conflitos, em lugar de sanar as feridas do passado. Quando são concedidas anistias no afã e na ânsia de virar a página dos conflitos, ou para a razão mais sinistra de encobrir os abusos, sua revogação sempre deve ser uma opção aberta a ser tomada na primeira oportunidade.
No entanto, na América do Sul e em outros lugares, o esquecimento continua sendo ativa e oportunamente promovido por meio de leis antigas e novas. Isso ocorre apesar do fato de que, como o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos assinalou, deixar indefesas as vítimas e perpetuar a impunidade na prática ou por mandato legal são atos manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Um desses casos é o do Brasil, onde o Tribunal Superior de Justiça negou a possibilidade de modificar a lei de anistia de 1979, afirmando que os crimes cometidos durante a ditadura foram “atos políticos”. No Chile, a lei de anistia continua vigente, 32 anos depois de sua promulgação, apesar do repúdio internacional após as inúteis tentativas de condenar o ex-ditador general Augusto Pinochet. Além disso, a possibilidade de ser concedido indulto a determinados violadores de direitos humanos, por ocasião do Bicentenário em setembro, está em debate atualmente.
No Uruguai, o partido do governo freou a apresentação de um projeto de lei que permitiria a libertação dos autores de violações de direitos humanos em razão de sua velhice. Nesse contexto, medidas para melhorar a prestação de contas são ainda mais notáveis. Na Argentina, país com maior número de julgamentos por direitos humanos no mundo, os tribunais continuam presidindo os casos de crimes de lesa humanidade e graves violações dos direitos humanos cometidos durante a guerra suja de 1976-1983 no país. O ex-ditador Rafael Videla está novamente no banco dos réus pelos abusos contra direitos humanos cometidos nessa época.
A Argentina demonstra que o conhecimento da verdade é um direito que não tem nenhum estatuto de limitações. Também é um direito que ninguém pode negar ou a ele renunciar. Toda pessoa e cada sociedade tem o direito de saber quem viola os direitos humanos e saber a razão, quando, onde e como foram cometidos os crimes, bem como de ser informado sobre o destino das vítimas.
As anistias que enterram a verdade e eximem os responsáveis por crimes do passado contra os direitos humanos podem prejudicar a perspectiva de construir sociedades justas e seguras no futuro. A impunidade incentiva o ressentimento e a falta de confiança nas instituições de governo. Inspiram alguns autores a cometerem novos crimes e também podem incentivar outros a unirem-se às fileiras dos violadores de direitos humanos.
A posição das Nações Unidas com relação às anistias não pode ser mais clara: não são admissíveis se evitam o julgamento de pessoas que possam ser penalmente responsabilizadas por crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade ou violações graves dos direitos humanos, incluídos os crimes que se dirigem especificamente às mulheres, bem como os relacionados com gênero.
O exercício destes direitos é incompatível com a impunidade normativa ou de fato. Os países do hemisfério ocidental devem prestar atenção à sentença do Tribunal Interamericano e entregar a justiça negada durante tanto tempo às vítimas das violações dos direitos humanos. Envolverde/IPS
* Navi Pillay é Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
(IPS/Envolverde)